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As Intermitências da Morte

É uma grande sacanagem filosófica a idéia principal do livro As Intermitências da Morte de José Saramago. A morte, cansada de ser odiada por todos, decide parar de matar. Ninguém mais vai morrer. Todos terão a tão sonhada eternidade absoluta. No primeiro momento, o que é visto como uma maravilhosa notícia, torna-se um pesadelo para todos. A igreja se desespera por perder o sentido de existir, o governo não dá conta dos gastos com a previdência, os hospitais ficam cada vez mais lotados e os pacientes moribundos impossibilitados de morrer. No país onde ninguém morre ninguém consegue viver.

Na dicotomia apresentada por Saramago fica impossível escolher de que lado ficar. Não há nada que aflija e desestruture tanto o ser humano quanto a morte. Nada angustia mais que o pensamento da perda daquelas pessoas que têm um espaço único em nossas vidas. Um espaço que ninguém mais poderá ocupar. Por isso é uma sacanagem mostrar que tudo seria bem pior caso a morte não existisse. Sem ela o mundo não funcionaria. As qualidades positivas que o ser humano foi capaz de cultivar perderiam o sentido. Chega a ser absurdo e doloroso escrever que é de extrema importância a morte existir. E dá medo. É como se estivesse desafiando a morte com a racionalidade, esta frágil que só.

Todos sentem a falta da morte no país onde ninguém morre. Pois então ela decide voltar. Agora com um serviço de correspondência que avisa com oito dias de antecedência quando irá chegar ao vivente. O desespero do fim da morte transforma-se no desespero por sua volta. A situação humana se mostra ironicamente trágica. Longe de ser tão engenhosa quanto o começo do livro, é nessa segunda parte do romance que consolida a noção de como Saramago escreve absurdamente bem. Não usa ponto final, abusa das vírgulas, escreve parágrafos enormes, alterna vozes apenas usando letra maiúscula, enfim, constrói grandes blocos de textos irregularmente perfeitos. Como escreve bem. Nem parece a figura carrancuda cujos comentários políticos são tão ultrapassados.

Pois a morte estranha quando uma de suas correspondências retorna. Alguém deixou de morrer. Alguém que deveria estar morto continua vivendo. A morte fica curiosa e decide investigar quem é essa pessoa. O que ela faz? Como ela vive? Para isso, a morte encarna na aparência humana de uma mulher e acaba por humaniza-se. Passa a sentir amor, compaixão, empatia. Tudo para que o mais previsível dos finais românticos aconteça: a redenção da morte através do amor. O que teve o início de uma forma genial infelizmente cai na vala do mais previsível clichê romântico. Mas Saramago não para sequer uma linha de escrever absurdamente bem. E mesmo no clichê faz com que vários sentimentos diferentes passe um frio em nossa espinha.