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Uma verdade sobre a Lei de Incentivo à Cultura

Quem mora em Porto Alegre e se orgulha do fato de a cidade fazer parte de um certo "roteiro internacional de shows" já deve ter percebido que essa realidade entrou em franca decadência. Desde o ano passado, o número de grandes espetáculos começou a rarear, e este ano eles simplesmente desapareceram. Mudança e tanto pra quem estava acostumado a ver por aqui estrelas internacionais do peso como Eric Clapton, Rogers Waters, Red Hot Chilli Peppers e Lenny Kravitz - e até mesmo os artistas brasileiros mais caros do momento, como Ivete Sangalo, Skank e Zezé Di Camargo & Luciano.

Acontece que muitos desses mega-shows eram patrocinados indiretamente pelo governo estadual por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a LIC, que anda em crise. Criada inicialmente para promover a cultura do Estado, a LIC foi totalmente desvirtuada. Pelo menos o objetivo moral da história. Ao dar uma olhada na planilha de gastos da Lei, observa-se facilmente que áreas como folclore e artes plásticas já nasceram escanteadas pra que grandes eventos de massa pudessem ser realizados. Eventos esses promovidos e devidamente lucrados pela iniciativa privada, diga-se. Na lista dos maiores captadores de recursos da LIC, as principais produtoras de shows do Estado estão invariavelmente entre as dez mais, gastando recursos que deveriam financiar a cultura original, nova, criativa, em vez de priorizar espetáculos de valor duvidoso, como um show de um artista já consagrado que, na prática, dá lucro sem precisar de lei alguma. Além de espetáculos musicais isolados, a LIC também ajuda a financiar coisas como o festival-de-verão-anual-de-uma-grande-rádio-que-você-sabe-qual-é, e dezenas de projetos que poderiam muito bem correr por conta e risco de seus realizadores. Francamente, não vejo vantagem em usar meu imposto pra trazer o Charlie Brown Jr. pro litoral gaúcho.

Até mesmo em projetos que a Lei de Incentivo parace cair como uma luva cabem alguns questionamentos.

Kerbs, oktoberfests e rodeios
Eventos que cobram ingresso, comercializam uma quantidade sem tamanho de produtos e serviços e deveriam ser auto-sustentáveis. Como sempre foram realizados, mesmo antes da existência de qualquer tipo de lei de incentivo, qual o motivo para pedirem (e ganharem) dinheiro do Estado? Há como fazer sem ajuda oficial.

Patrimônio Histórico e Cultural
Leia-se prédios que, em geral, são do governo, e deveriam ser mantidos por ele, sem raspar o dinheiro da Cultura.
Esse terreno é pantanoso, mas pra mim é muito claro que a LIC não deveria ser usada pra isso. Por que o Governo Federal não pode manter a estrutura histórica dos prédios da UFRGS? Aquilo é uma universidade e, antes de tudo, um conjunto de prédios funcionais, salas de aula. Por que alguns prédios da administração estadual precisam usar verba da Cultura para reformar paredes? Pra ambos os casos há impostos que deveriam ser refletidos em verbas específicas pra manuntenção. Não há lógica em usar incentivos da Cultura no restauro de prédios. O argumento de que eles próprios fazem parte da cultura não cola. Uma árvore centenária faz parte da cultura e não precisa de incentivo algum pra ser podada. O calçamento da Rua da República (feito ainda por escravos) faz parte da cultura. Quer dizer que se o Demae abrir um buraco pra consertar um vazamento qualquer vamos acionar a LIC pra reordenar as pedras da via? No mundo ideal talvez sim, mas não no Brasil, onde muitos projetos novos são inviabilzados por falta de dinheiro.

Essa seção (Patrimônio Histórico) é a que mais gasta os incentivos da Lei, toma frequentemente mais de 20% do bolo, fatia que poderia fazer nascer milhares de novas peças teatrais, livros, filmes, discos, revistas, festivais de cultura, exposições e etceteras.

Nessa área entra algo ainda mais problemático. O Estado ajuda, por meio da Lei, a restaurar igrejas, sobretudo as católicas. Ora, a Igreja Católica é uma entidade PRIVADA, com claros fins lucrativos, investidora conhecida, sócia de mega-empreendimentos e detentora de uma reserva de ouro do tamanho do Bom Fim. Além disso, tem bilhões de fiéis ao redor do mundo que pagam dízimo (mensalidade). Não há lógica em dar dinheiro para reformar igrejas. Seria algo equivalente a pagarmos para reformar a sede social de um clube. Sem pé nem cabeça.


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Não vou repetir a história "Pavarotti x Anahy de las Misiones", leiam nos originais do Giba Assis Brasil. Ele também joga outras luzes sobre a questão.

Está mais do que na hora de rediscutir essa Lei.

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