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(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

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Imperfeição

Acordou decidido a fazer alguma coisa. Isabela ainda dormia e por alguns momentos Sérgio admirou-a com a lentidão que nunca dispunha quando estava acordada. Percorreu as pequenas marcas que conhecia. Uma cicatriz na testa da vez em que ela, ainda criança, bateu a cabeça na quina da porta. O queixo que Isabel nunca deixava ser tocado. Brincou com os cabelos e depois tamborilou suavemente os dedos pelos ombros da mulher. Sentindo a mistura de maciez e firmeza que se só se encontra nos jovens, se aproximou e sentiu seu cheiro. Então os olhos chegaram ao nariz. Com uma careta, ele deu um salto e se levantou.

Odiava aquele nariz. Para ele, não era um nariz mal desenhado ou desproporcional, como quase todo mundo tem. Era um nariz irreparavelmente feio. Ainda sonolento, preparou o café e bebeu sozinho. Ainda pensava no nariz:

"Um monstro. Estraga qualquer conjunto".

Ao voltar para casa, naquela noite, suava. Abriu a porta e entrou na sala aos pulos. Arrancou um jornal de dentro da pasta e entregou a Isabela. Enquanto falava, começou um tique nervoso que sempre aparecia quando estava ansioso.

"Isabela - entortou a cabeça e fez um esgar com a boca - olha essa notícia".

No jornal, ela viu a foto de um homem completamente calvo, de uns cinqüenta anos. Na verdade não era uma notícia e sim o anúncio de uma clínica de cirurgia plástica.

"Ele - mais um giro com a cabeça - é o doutor Cristiano. Pode resolver o nosso problema. Diz aqui que é o melhor".
Ao perceber a idéia do marido, Isabela gritou de raiva, virou as costas e se trancou no quarto. Sabia da mania de Sérgio. No início, tratou-a como uma excentricidade. Mas com o passar dos anos e a insistência dele no assunto, começou a concordar. Como Sérgio, encontrou pequenas imperfeições (reentrâncias que achava mal acomodadas, o formato do septo nasal) até se convencer de que havia uma desarmonia geral. No entanto, a cirurgia era uma solução na qual jamais pensara.

Horas depois, Sérgio ainda insistia. A vontade da Isabel aos poucos desmoronou. Dava importância ao gosto do marido, mais ainda à felicidade de Sérgio. Enquanto ele, embalado pelo sonho do nariz novo, falava das maravilhas do doutor Cristiano e de como ficaria mais bonita, andou pela casa feito uma sonâmbula. Por horas se olhou no espelho, examinando cada pedaço do nariz. O que havia de errado? Às vezes, como agora, não se sentia incomodada.

Cedeu antes que a noite acabasse. “ Se é o que você quer, eu faço”, desabafou, a voz quase sumida Sempre seguia a vontade de Sérgio.

O doutor Cristiano tinha a expressão dos olhos e a voz de um ex-seminarista.Desenvolvera com o passar dos anos o hábito de receber os pacientes sempre com a mesma pergunta:

“O que vamos deixar mais bonito?"

Ao ver Isabela, ficou admirado por sua beleza. Um rosto sem imperfeições à vista. Mas, por hábito ou por saber que não existe perfeição verdadeira, fez a pergunta de sempre:

“O que vamos deixar mais bonito?”

Ela apontou para o nariz. Doutor Cristiano se debruçou sobre seu rosto, apalpando e olhando seu nariz com uma lente de aumento.

"Impossível" - disse por fim. "Nunca vi um nariz tão perfeito".

Isabela contou tudo.

Duas semanas depois, ela e Sérgio foram ao consultório do Doutor Cristiano para a retirada do curativo. Cada bandagem arrancada o cirurgião fez acompanhar de um comentário. "Foi um trabalho de mestre" ou "fizemos o impossível". Em vez de ficar ofendida com as observações, Isabela olhava para o médico de um jeito agradecido. Quando seu nariz finalmente surgiu, Sérgio deu um gemido e depois abraçou o médico. Começou a chorar, sussurrando "obrigado, obrigado...". Isabel também chorou, mas por uma gratidão diferente.

Como combinaram secretamente, o cirurgião apenas cobriu o nariz com gaze e mercurocromo. Não fez cirurgia alguma. Sérgio, pela primeira vez vendo seu nariz do jeito que sempre foi, beijou-o seguidas vezes com os olhos marejados. Enquanto amava aquele nariz, o tique voltou e, sem se dar conta, começou a girar a cabeça como

# alexandre rodrigues | 25 de janeiro Comentários (0) | TrackBack (0)


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