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(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

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O direito ou o esquerdo?


"Senhor Alexandre?”

“Sim?”

“Só para confirmar: o senhor é Alexandre ...?”

“Sou”.

“Tudo bem. Estou ligando a respeito do olho”.

“O olho?”

“O transplante”.

“Transplante? Não sei de nenhum transplante. É algum tipo de brincadeira?”

“Não. O senhor não recebeu a comunicação?”

“Que comunicação?”

“A respeito de sua doação”.

“Doação? Eu não...”

“O senhor não recebeu mesmo a comunicação?”

“Não que eu me lembre”.

"Me desculpe então. É para o senhor comparecer amanhã de manhã. Anote o endereço”.

“Não estou entendendo. Comparecer a quê?”

“À doação”.

“Mas eu já disse. Não preciso que me doem um olho”.

"Está havendo um mal entendido. O senhor não vai receber. É para doar um olho”.

“Doar um olho? Como assim?”

“Tem certeza mesmo de que não recebeu a comunicação? Quem sabe dando uma revirada na correspondência”.

“Tenho. Que história é essa de doar um olho?”

“É o que está aqui anotado”.

“Mas quem anotou?”

“Quem? Ora, o computador”.

“Isso não faz sentido. Eu não vou a lugar nenhum”.

“Tenho certeza... o senhor não recebeu mesmo a comunicação?”

“Não, com toda certeza”.

"O senhor queira nos desculpar. Há muita gente nova sendo contratada e nem sempre o treinamento funciona. No seu caso, posso pedir um adiamento. Mas o senhor terá que entrar com um recurso. Anote o endereço”.



“Bom dia”.

“Bom dia. Protocolo de Recursos sobre Doações e Receptações?”

“Aqui mesmo. O senhor quer entrar com um recurso?”

“Isso mesmo”.

“Veio ao lugar certo. Qual o caso?”

“O olho”.

“O olho?”

“Querem me arrancar o olho. Me ligaram e disseram que tenho que doar um olho. Mas eu não autorizei nenhuma doação. Com certeza se trata de um erro”.

“O senhor não está a par das últimas leis?”

“De algumas. É difícil acompanhar. São tantas sendo aprovadas que não se pode saber de todas”.

“O senhor pode dar entrada em um recurso-padrão. É preciso preencher um requerimento e depois passar por uma entrevista”.

“Quem faz a entrevista? Você?”

“Não. Sou apenas secretária aqui. As entrevistas são feitas pelo Especialista. Sou a secretária dele”.

“Ele é especialista em quê?”

“Pelo que ouvi falar em várias coisas. Mas principalmente é especialista em acertar quem deve e quem não deve ter o recurso aprovado. Dizem que tem um altíssimo grau de acerto”.

“A entrevista será feita hoje mesmo?”

“Não, claro que não. Não é tão rápido. Temos aqui muito trabalho. Há casos demais sendo analisados. O senhor recebe uma comunicação em casa. Demora duas ou três semanas. Até lá o seu processo fica suspenso. Alguma outra pergunta?”

“Não”.

“Ah! Tem uma coisa aqui”.

“O quê?”

“O senhor não disse de que olho se trata. Vai ser o direito ou o esquerdo?”




“Bom dia”.

“Estou de volta. A entrevista é hoje”.

“Pode sentar e esperar a chamada”.




“Qual é o problema?”

“O senhor é o Especialista?”

“É só o nome do cargo. Do que se trata?”

“Fui informado de que tenho que doar um olho”.

“Um olho, hein? O direito ou o esquerdo?”

“Eu não quero doar olho algum”.

“Qual a justificativa?”

“E preciso de uma justificativa? É o MEU olho. Nasceu comigo. Pertence a mim, só a mim”.

“O senhor não tem acompanhado as leis? O conceito de propriedade inviolável do próprio corpo já não vale mais. Foi revogado. Era de se esperar depois de tudo que aconteceu. Estamos em tempos difíceis, meu amigo. Agora, como o senhor devia saber, ninguém é mais dono do próprio corpo. Tem que ser merecedor para ter o direito de manter todos os seus órgãos dentro de si”.

“Quer dizer que eu não sou mais dono do meu olho?”

“Olhando o seu processo, tenho certeza que não. O senhor não necessita de ter dois olhos se não os usa. A sua mulher, por exemplo”.

“O que tem ela?”

“Ela trai o senhor quase todos os dias! Desbragadamente. Da maneira mais ignóbil. Com vários amantes. Mesmo quando o senhor está em casa, às vezes escapa para uma ida ao motel. Uma vez recebeu um amante mesmo com o senhor dormindo no quarto ao lado”.

“Não posso acreditar”.

“Precisa de provas, não? Pois não, veja bem. Aqui estão as fotos. Está reconhecendo? Ele mesmo, o seu cunhado, marido da sua irmã. No seu quarto, na sua cama. E nesta aqui é um motoboy de farmácia. Este é um ex-colega de faculdade. Esse outro, um desconhecido que ela abordou no supermercado. Esse aqui é muito especial. O Romualdo. Seu maior rival no trabalho. Sabemos de sua antipatia por ele. O senhor é subordinado dele, não?”
“Hoje em dia sou, mas...”

“Verdade, já foi o contrário. Posso ver na ficha. Nos últimos cinco anos o senhor e Romualdo disputaram diversas promoções e ele foi escolhido em todas as ocasiões. Veja a foto. O senhor faz com ela o que ele está fazendo? Tem também o seu filho. Sabia que ele vende maconha a domicílio? Toma bomba na faculdade e o senhor não faz nada, só continua pagando a mensalidade”.

“O meu filho, não. Agora já é demais. Isso é um absurdo”.

“Posso apresentar as provas. Nada é dito sem elas. Não é só no trabalho ou em casa. Está aqui: seus irmãos lhe passaram a perna na partilha dos bens da herança. Tinha direito a vinte e cinco por cento de tudo e ficou com menos da metade disso. Tem ainda o vizinho que lhe afronta quase todas as semanas e o senhor não reage. O flanelinha da frente do seu prédio, que vive pedindo dinheiro emprestado com uma desculpa esfarrapada e nunca paga. Sinto muito, mas é impossível atender ao seu pedido. Tenho que pensar também em quem está na fila de transplantes e é muito mais merecedor de um olho do que o senhor, verdadeiras vítimas do infortúnio e não ingratos que não sabem o valor do que receberam da natureza e o tempo todo a-gem como cegos. As pessoas deveriam ter pensado nisso quando as doações caíram a zero. Estariam todos com seus órgãos. Vamos ter que marcar a cirurgia. O senhor prefere o direito ou o esquerdo?”

“Tenho uma pergunta”.

“Pode fazê-la”.

“E se em vez dos olhos fosse um fígado? Eu teria que doar meu único fígado se fosse um alcoólatra antes de destruí-lo de vez? Isso certamente me levaria à morte”.

“A lei tem exceções. Por exemplo, nós não podemos deixar o senhor sem os dois olhos, cego por completo. Seria uma crueldade. Não somos uma sociedade de bárbaros. Já privá-lo de apenas um olho faz mais justiça do que o contrário. Um fumante só perde um pulmão, assim como um único rim é extirpado de um amplo espectro de infelizes, baseado em critérios diversos e em geral diferentes dos outros casos, posto que é muito difícil apontar com certeza quem está e quem não está prejudicando os próprios rins. No entanto, no seu caso, devo confessar, a coisa está bem simples e clara como a água limpa. O senhor ainda terá o outro olho. Enquanto isso, um cego, a quem a mão cruel do destino privou da visão entra de novo no mundo das imagens e cores. Chega mesmo a ser comovente. O senhor devia se orgulhar. E sabe qual o melhor de tudo? Agora o senhor também pode estará numa lista de transplantes. Se der um jeito de mostrar que é merecedor de dois olhos e algum desafortunado cometer um deslize, nós tiramos um olho dele e colocamos no lugar do seu antigo”.

“Mas eu quero continuar com o meu olho atual. Não posso me arrepender agora?”

“E uma pergunta que eu ouço com freqüência. A resposta é não. Os regulamentos são claros. É preciso o prazo mínimo de seis meses para uma recuperação ser oficialmente atestada. Antes disso o senhor já vai ter se tornado um doador. Regras são regras, será o direito ou o esquerdo?”




“Como foi?”

“Nada feito. Vou perder mesmo o meu olho”.

“Ora, não fique assim. Não é o fim do mundo. O senhor ainda terá o outro olho. É um belo olho por sinal. Os dois. Já escolheu qual vai ser?”

“Não escolhi. Obrigado pelo elogio”.

“O senhor por inteiro é simpático”.

“Mas ora... A senhora...”

“O que tem?”

“É bem jeitosa”.

“Obrigado. Fico feliz de ouvir”.

“É sério”.

“Posso contar um segredo?”

“Claro”.

“Eu simpatizei com o senhor”.

“Eu também”.

“Também o quê?”

“Simpatizei com a senhora”.

“Eu vou ajudá-lo”.

“Vai?”

“Vou. O senhor pode entrar com um Recurso Funcional Completo de Segunda Instância para uma revisão total do seu caso. É automático, o processo pára enquanto são reanalisadas todas as acusações. É um trabalho demorado, pode levar anos. Está sempre faltando gente por aqui. A maldita burocracia. E os poucos contratados são uns incompetentes. Enquanto isso o senhor continua com os olhos no lugar”.

“Por que o seu chefe não me disse isso?”

“É nossa política manter essa história em segredo. Se todo mundo souber, a lei não funciona e as doações e transplantes caem. Depois provavelmente iriam mudar as regras e fechar esse buraco. Aceita um café? Eu saio daqui a pouco. Só há mais uma entrevista marcada para hoje”.

“Será um prazer”.

“Podemos combinar um lugar. Conheço, esse é ótimo. Já faz tempo que não vou lá. Ainda tem os velhos anões? São umas gracinhas. Ah, ia me esquecendo: para dar entrada no recurso, a operação precisa estar marcada. O senhor... posso te chamar de você?... você, pronto. Você terá que escolher um olho para ser retirado. Não se preocupe, é só formalidade. Alguma preferência, vai ser o direito ou o esquerdo?”

# alexandre rodrigues | 18 de agosto Comentários (2) | TrackBack (0)


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