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(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

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Autoflagelação*


No meu delírio favorito, estou sentado com a carteira na mão e na parte de anotações gerais está escrito auxiliar de escritório, mas meu trabalho de verdade é tirar carteiras de identidade oito horas por dia, cinco dias por semana, e é isso que acontece durante quase o tempo todo.

Faço duzentas carteiras por semana. Marcos, o chefe, diz que quando trabalhava no balcão sua média era duzentas e cinqüenta e que agora as pessoas ficaram mais lentas e preguiçosas por causa da má alimentação e da falta de exercícios e muita coisa parecida e, embora seja só a palavra dele, não haja nenhuma prova, eu sempre faço que sim com a cabeça porque tenho essa mania de concordar.

Marcos é o único ruivo e também o único careca. Gosta de falar com a televisão, que fica ligada o tempo todo enquanto trabalha (**). Como chefe, o único que tem a chave do cofre onde ficam as carteiras de identidade em branco. Quando precisamos de uma, buscamos na pilha no fundo do cofre e quase ao mesmo tempo Marcos corre para anotar em um grande caderno de capa preta o nome de cada um e um sinal correspondente ao lado. No fim do expediente, soma as anotações e compara com o número de carteiras no cofre e sua numeração e o número de carteiras nos envelopes, prontas para serem enviadas ao Instituto, que cola a parte da carteira que mandamos – a da frente – com aquela que eles mesmos fazem – a de trás.

Não é que as pessoas não gostem dele, nem nada assim. Não é do tipo que perturba o clima, nem persegue os outros. Trata os subordinados, assim como é tratado, com suave indiferença e mesmo que seja o primeiro a chegar e o último a sair, não exige que ninguém mais faça o mesmo. Quando a maioria de nós vai embora, geralmente continua no mesmo lugar, na mesa, o cofre com as carteiras aberto a seu lado.

Então chega a noite, sexta-feira, em que o expediente já terminou e eu continuo no supermercado por causa dessa funcionária do balcão de frios, que tem as mãos pequenas e muito femininas, brancas e também não usa perfume e nem pinta as unhas, cujo horário não demora a terminar. Faltando dez minutos, vou para a saída esperá-la, mas antes, passando ao lado, vejo que ainda há gente no posto. O posto é um cubículo envidraçado, encaixotado entre a agência de turismo e o balcão de perfumaria. Do lado de dentro, Marcos – vejo me aproximando um pouco mais – está de costas para a vitrine, abaixado e meio na penumbra, só com uma das luzes acesas.

Tira uma pilha de carteiras e põe em cima da mesa. Começa a desfazê-la e depois, com as mãos trêmulas, a acariciá-la(***). Manuseia o papel experimentando-o um pouco com a ponta dos dedos. Esfrega-o depois no rosto. Quando sente o cheiro de novo, mesmo um pouco distante, posso jurar que geme.

(*) Essa é uma segunda versão.
(**) Seus comentários favoritos são para o Jornal do Almoço.
(***) A cartonofilia ocupa curioso escaninho no inventário das preferências sexuais modernas, o das bizarrices e das aberrações, que atinge mais ou menos 0,002% da população mundial, e, cientificamente, costuma ser definido como o ato de sentir prazer sexual em contato com alguns tipos (ou todos) de papel. Datam as primeiras práticas da invenção, em 1861, do "Lipman´s Postal Card", o primeiro cartão postal. Seus praticantes são raros, mas, estranhamente, famosos, o que incentivou desde o início os casos em que que vieram a público revelar-se e nem por isso foram tratados como párias sexuais. Um deles é Samuel Morse.

# alexandre rodrigues | 8 de maio Comentários (1) | TrackBack (0)


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