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Feito bicho Mal dá oito e meia e acorda assustado. Os pedreiros que trabalham na obra do prédio já começaram a bater. A obra dura mais de um mês, a fachada está sendo impermeabilizada para evitar vazamentos nos apartamentos. Por causa dela não dorme direito, quatro ou cinco horas por noite no máximo. As grandes olheiras denunciam a sonolência que quase nunca o abandona. Ainda zonzo do despertar, vê pela janela o andaime armado à altura do apartamento, diante de outra janela, e nele, dois operários martelando a parede. Furam pequenos buracos no reboco. Aí eu peguei ela de jeito - diz um dos operários do lado de fora. Encostei num canto e dei decisão. No início ela fez que não queria, mas aí começou a ceder. E como foi depois? - o outro quer saber. Feito bicho. Os dois dão uma gargalhada. No elevador, repete a frase. Não conseguiu ver direito os operários, ficou com medo de pôr a cabeça para fora da janela e chamar a atenção deles. Medo de que não gostassem ao saber que estava ouvindo a conversa alheia. Deixou a janela com uma risada dessas que se dá quando uma coisa é engraçada, mas não muito. Foi tomar banho, era quase hora de sair. Porém a frase não foi embora. Se vira para Dona Deolinda, a zeladora surda e muito idosa que carrega um balde destes que vêm com um esfregão acoplado. Dona Deolinda olha a porta do elevador. Aperta os olhos e tenta enxergar se há alguma mancha para ser limpa. Ao contrário da audição, tem muito boa visão. Ele a cumprimenta como se desse o bom dia: Feito bicho. Dona Deolinda, que é mesmo muito surda, não ouve o cumprimento e por isso nada acha de errado. Continua examinando a porta do elevador até a hora em que chega seu andar e então sai devagar, arrastando o balde com esfregão acoplado. Associadas à frase, cenas e suposições surgem à mente. Imagina animais fazendo sexo. Imagens de documentário. Feito bicho, diz para a vizinha gostosinha do terceiro andar que acaba de entrar no elevador e, assustada, finge que não o ou-ve. Leões e rinocerontes fodendo no Discovery Channel. Feito bicho, grita pela janela do carro, parado em um sinal, quando outro motorista faz uma barbeiragem à sua frente. O pênis do golfinho é pouco menor do que o humano. Dizem que o sexo entre as duas espécies é possível. Feito bicho, para o guardador do estacionamento, entregando-lhe a chave do carro. É recém-separado. A mulher reclamava de não receber a atenção devida. O deixou por uma lésbica, que conheceu numa viagem a Porto Alegre. A lésbica se chama Juliana e agora as duas moram juntas. Conheceu outra Juliana no colégio. Morreu afogada em um açude da Bahia, durante as férias. O chefe, mal o vê entrar na redação, grita seu nome. Feito bicho, ele responde. O chefe não ouve direito, está ba-rulho demais à volta, manda vir até sua mesa. Tem um incêndio em um prédio aqui perto. O que tu anda fazendo? É repórter de jornal. Geralmente escreve sobre assaltos, seqüestros, quadrilhas, rebeliões, assassinatos, encontros de cadáveres, corrupção policial, atropelamentos, grandes operações policiais, apreensão de drogas e de armas, o aumento da criminalidade em geral e em seus piores detalhes. Feito bicho – repete. De novo o chefe não o ouve direito. Está ficando meio surdo, embora não admita. Culpa de ficar sentado perto da tevê, que, ligada num canal a cabo, despeja o noticiário no volume máximo o tempo todo. Apanha o pedaço de papel com o endereço do incêndio. No carro do jornal, o entrega ao motorista e diz: Feito bicho. O motorista entende que é uma ordem para correr e sai costurando o trânsito. Já está acostumado. De vez em quando é preciso esquecer o limite de velocidade e as ultrapassagens permitidas para a notícia não acabar antes da chegada da equipe do jornal. Desta vez o prédio não fica muito longe. Chegam em poucos minutos. Na cabeça de Caruso, que é como se chama o personagem desta história, a repetição passa despercebida. Primeiro achou graça na frase. Repetiu-a mentalmente ao lembrar do jeito de falar do pedreiro, acrescentando na terceira vez a visão de dois corpos vorazes, satisfeitos e suados. Mas não seria capaz de dizer o que o fez dizer a frase uma quarta e depois uma quinta e a sexta vez. Antes que percebesse, em pouquíssimo tempo, havia um só pensamento no Grande Salão da Mente. Bloqueava qualquer outro. Grandes ajuntamentos de neurônios, com suas sinapses, trocavam a mesma informação: Feito bicho. Células davam suas ordens, Feito bicho, e recebiam suas próprias ordens, Feito bicho. O que quer dizer Feito bicho já não tem a mínima importância em todo o processo. Feito bicho - ele cumprimenta um policial conhecido que vigia o cordão de isolamento em volta do prédio.
Bicha? Parece coisa de fresco - o policial retruca. Adora fazer piadas sobre homossexuais.
Feito bicho.
O policial dá risada. Acha que é brincadeira. É bem-humorado. Passa as informações a Caruso, que anota tudo em um bloco. Tudo o que escreve, porém, é Feito bicho, Feito bicho, Feito bicho, Feito bicho, linha por linha, até terminar a folha. Feito bicho, agradece. O policial observa enquanto se afasta. A brincadeira, pensa, já perdeu a graça. Perto do prédio encontra um bombeiro. Caruso grita Feito bicho para ele, que não entende nada por causa do barulho – as chamas, sirenes, explosões e pedaços do prédio caindo, os gritos a multidão de desocupados que não se afasta de maneira nenhuma - e berra em resposta: Já está tudo controlado. Tinha uma mulher presa no apartamento, mas foi salva assim que chegou a primeira equipe. O bombeiro também é meio surdo por causa da explosão de um botijão de gás, anos atrás. Escapou vivo por sorte. De volta à redação, escreve no computador. No lugar do título: Feito bicho. No espaço reservado ao texto, repetidas vezes: Feito bicho. Linha por linha, até terminar a página. Tem algum filho da puta aqui dentro. Sacanearam a matéria do Caruso. Se descobrir quem foi, demite - ordena. Um estagiário liga para a polícia e para os bombeiros para pegar de novo as informações. Para evitar maiores transtornos, o editor de cidade publica o nome de Caruso como o autor da matéria, embora o texto seja de outro. Ainda assim, pensam todos, a sabotagem no texto já será motivo suficiente para uma explosão de raiva de Caruso. Freqüentemente jornalistas têm ataques de estrelismo. Caruso não é dado a explosões, mas um dia já perdeu a calma. Os mais antigos de vez em quando contam a história, uma piada da redação. No meio de uma reunião, após ouvir as críticas de um editor qualquer a uma reportagem que lhe custara muito tempo e dedicação, se levantou calmamente, pegou a cadeira onde estivera sentado e a atirou com força na parede. A cadeira ficou destroçada. Uma perna se soltou, ricocheteou na parede e atingiu o tampo de vidro da mesa de reuniões, que se estilhaçou. Cacos de vidro caíram sobre os pés de todos, por sorte não ferindo ninguém. A tudo Caruso assistiu de pé, impassível. Depois deu meia-volta e saiu da sala. Foi para casa. Voltou no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. A esperada demissão não aconteceu. Ninguém jamais tocou no assunto com ele. A mesa quebrada foi substituída uma semana depois. É o caso. Um milionário foi morto na porta do prédio. Tinha uma firma de importação e exportação, mas era suspeito de contrabando, lavagem de dinheiro e alguns crimes menores. Tipo de história que se estica por dias Dá a Caruso outro papel com um endereço. A polícia já está no local - informa. Antes de sair, Caruso nota que o chefe está suando. Além de meio surdo, o chefe sua demais, mesmo com o ar condicionado ligado. Uma cachoeira descendo pelas costas, empapando as roupas. O médico disse que o suor é nervoso. Caruso não tem problemas de suor e nem levou um tiro e nem ouviu a explosão de um botijão de gás. Apesar do calor, usa um colete sobre a camisa. No bolso do colete guarda o papel com o endereço e depois dá um tapinha no ombro do chefe. Dá alguns passos, mas pára no meio do caminho e volta até a mesa. Os colegas próxi-mos aguardam. É agora, pensam, mas Caruso só grita de surpresa, para que todos possam ouvir: Feito bicho. Depois sai caminhando orgulhoso, o peito estufado, como se tivesse dito a coisa mais inteligente do mundo. # alexandre rodrigues | 17 de fevereiro Comentários (0) | TrackBack (0) |
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