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(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

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Feito bicho

Mal dá oito e meia e acorda assustado. Os pedreiros que trabalham na obra do prédio já começaram a bater. A obra dura mais de um mês, a fachada está sendo impermeabilizada para evitar vazamentos nos apartamentos. Por causa dela não dorme direito, quatro ou cinco horas por noite no máximo. As grandes olheiras denunciam a sonolência que quase nunca o abandona. Ainda zonzo do despertar, vê pela janela o andaime armado à altura do apartamento, diante de outra janela, e nele, dois operários martelando a parede. Furam pequenos buracos no reboco.

Aí eu peguei ela de jeito - diz um dos operários do lado de fora. Encostei num canto e dei decisão. No início ela fez que não queria, mas aí começou a ceder.

E como foi depois? - o outro quer saber.

Feito bicho.

Os dois dão uma gargalhada.

No elevador, repete a frase. Não conseguiu ver direito os operários, ficou com medo de pôr a cabeça para fora da janela e chamar a atenção deles. Medo de que não gostassem ao saber que estava ouvindo a conversa alheia. Deixou a janela com uma risada dessas que se dá quando uma coisa é engraçada, mas não muito. Foi tomar banho, era quase hora de sair. Porém a frase não foi embora.

Se vira para Dona Deolinda, a zeladora surda e muito idosa que carrega um balde destes que vêm com um esfregão acoplado. Dona Deolinda olha a porta do elevador. Aperta os olhos e tenta enxergar se há alguma mancha para ser limpa. Ao contrário da audição, tem muito boa visão. Ele a cumprimenta como se desse o bom dia:

Feito bicho.

Dona Deolinda, que é mesmo muito surda, não ouve o cumprimento e por isso nada acha de errado. Continua examinando a porta do elevador até a hora em que chega seu andar e então sai devagar, arrastando o balde com esfregão acoplado.

Associadas à frase, cenas e suposições surgem à mente. Imagina animais fazendo sexo. Imagens de documentário. Feito bicho, diz para a vizinha gostosinha do terceiro andar que acaba de entrar no elevador e, assustada, finge que não o ou-ve. Leões e rinocerontes fodendo no Discovery Channel. Feito bicho, grita pela janela do carro, parado em um sinal, quando outro motorista faz uma barbeiragem à sua frente. O pênis do golfinho é pouco menor do que o humano. Dizem que o sexo entre as duas espécies é possível. Feito bicho, para o guardador do estacionamento, entregando-lhe a chave do carro.

É recém-separado. A mulher reclamava de não receber a atenção devida. O deixou por uma lésbica, que conheceu numa viagem a Porto Alegre. A lésbica se chama Juliana e agora as duas moram juntas. Conheceu outra Juliana no colégio. Morreu afogada em um açude da Bahia, durante as férias.

O chefe, mal o vê entrar na redação, grita seu nome. Feito bicho, ele responde. O chefe não ouve direito, está ba-rulho demais à volta, manda vir até sua mesa.

Tem um incêndio em um prédio aqui perto. O que tu anda fazendo?

É repórter de jornal. Geralmente escreve sobre assaltos, seqüestros, quadrilhas, rebeliões, assassinatos, encontros de cadáveres, corrupção policial, atropelamentos, grandes operações policiais, apreensão de drogas e de armas, o aumento da criminalidade em geral e em seus piores detalhes.

Feito bicho – repete.

De novo o chefe não o ouve direito. Está ficando meio surdo, embora não admita. Culpa de ficar sentado perto da tevê, que, ligada num canal a cabo, despeja o noticiário no volume máximo o tempo todo.

E o que é? Não estou sabendo disso. Faz uma coisa, põe isso de lado um pouco e vai para esse incêndio que está acontecendo agora. Leva fotógrafo.

Apanha o pedaço de papel com o endereço do incêndio. No carro do jornal, o entrega ao motorista e diz:

Feito bicho.

O motorista entende que é uma ordem para correr e sai costurando o trânsito. Já está acostumado. De vez em quando é preciso esquecer o limite de velocidade e as ultrapassagens permitidas para a notícia não acabar antes da chegada da equipe do jornal. Desta vez o prédio não fica muito longe. Chegam em poucos minutos.

Na cabeça de Caruso, que é como se chama o personagem desta história, a repetição passa despercebida. Primeiro achou graça na frase. Repetiu-a mentalmente ao lembrar do jeito de falar do pedreiro, acrescentando na terceira vez a visão de dois corpos vorazes, satisfeitos e suados. Mas não seria capaz de dizer o que o fez dizer a frase uma quarta e depois uma quinta e a sexta vez. Antes que percebesse, em pouquíssimo tempo, havia um só pensamento no Grande Salão da Mente. Bloqueava qualquer outro. Grandes ajuntamentos de neurônios, com suas sinapses, trocavam a mesma informação: Feito bicho. Células davam suas ordens, Feito bicho, e recebiam suas próprias ordens, Feito bicho. O que quer dizer Feito bicho já não tem a mínima importância em todo o processo.

Feito bicho - ele cumprimenta um policial conhecido que vigia o cordão de isolamento em volta do prédio.

Bicha? Parece coisa de fresco - o policial retruca. Adora fazer piadas sobre homossexuais.

Feito bicho.

O policial dá risada. Acha que é brincadeira. É bem-humorado. Passa as informações a Caruso, que anota tudo em um bloco. Tudo o que escreve, porém, é Feito bicho, Feito bicho, Feito bicho, Feito bicho, linha por linha, até terminar a folha.

Feito bicho, agradece. O policial observa enquanto se afasta. A brincadeira, pensa, já perdeu a graça.

O policial tem senso de humor porque já levou dois tiros. Em ambas as ocasiões a bala passou perto de tendões e artérias importantes e foi se alojar em músculos longe dos órgãos vitais, não deixando maiores seqüelas. Levar um tiro duas vezes o fez ver a vida de outra maneira. Quando perguntam porque é tão positivo, responde que é porque a vida não quis deixá-lo infeliz. Ri o tempo todo, de qualquer piada, mesmo das coisas mais sem graça e insignificantes.

Perto do prédio encontra um bombeiro. Caruso grita Feito bicho para ele, que não entende nada por causa do barulho – as chamas, sirenes, explosões e pedaços do prédio caindo, os gritos a multidão de desocupados que não se afasta de maneira nenhuma - e berra em resposta: Já está tudo controlado. Tinha uma mulher presa no apartamento, mas foi salva assim que chegou a primeira equipe.

O bombeiro também é meio surdo por causa da explosão de um botijão de gás, anos atrás. Escapou vivo por sorte.

De volta à redação, escreve no computador. No lugar do título: Feito bicho. No espaço reservado ao texto, repetidas vezes: Feito bicho. Linha por linha, até terminar a página.

Eis um pouco do processo industrial de um jornal. A matéria, depois de pronta, é enviada para o computador do chefe, que a lê e manda para o editor que a colocará na página junto com título e foto. A este processo dão o nome de edição. Mas o chefe está atarefado e não lê a matéria, passando-a direto para o editor de cidades. No final do dia, o editor de cidades, que reservara um razoável espaço no jornal para o assunto, já que o dia está uma pasmaceira, procura o texto do incêndio e encontra o que Caruso escreveu. Ele já foi para casa, alguém informa. O editor conhece Caruso há mais de quinze anos, sabe que não é dado a brincadeiras. Procura o editor-chefe. Diz:

Tem algum filho da puta aqui dentro. Sacanearam a matéria do Caruso.

O editor de cidades nunca levou um tiro e nem ouviu a explosão de um botijão de gás. Uma vez por semana sai do jornal e vai para um clube de swing, onde se senta em um canto escuro e começa a se embebedar. Só depois da quarta cerveja toma coragem para se levantar e participar da festa.

O editor-chefe também nunca levou um tiro e também conhece Caruso há mais de quinze anos. É casado, mas não faz sexo com a mulher há mais de seis meses.

Se descobrir quem foi, demite - ordena.

Um estagiário liga para a polícia e para os bombeiros para pegar de novo as informações. Para evitar maiores transtornos, o editor de cidade publica o nome de Caruso como o autor da matéria, embora o texto seja de outro. Ainda assim, pensam todos, a sabotagem no texto já será motivo suficiente para uma explosão de raiva de Caruso. Freqüentemente jornalistas têm ataques de estrelismo. Caruso não é dado a explosões, mas um dia já perdeu a calma. Os mais antigos de vez em quando contam a história, uma piada da redação. No meio de uma reunião, após ouvir as críticas de um editor qualquer a uma reportagem que lhe custara muito tempo e dedicação, se levantou calmamente, pegou a cadeira onde estivera sentado e a atirou com força na parede. A cadeira ficou destroçada. Uma perna se soltou, ricocheteou na parede e atingiu o tampo de vidro da mesa de reuniões, que se estilhaçou. Cacos de vidro caíram sobre os pés de todos, por sorte não ferindo ninguém. A tudo Caruso assistiu de pé, impassível. Depois deu meia-volta e saiu da sala. Foi para casa. Voltou no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. A esperada demissão não aconteceu. Ninguém jamais tocou no assunto com ele. A mesa quebrada foi substituída uma semana depois.

De manhã, todos interrompem o que estão fazendo quando vêem Caruso chegar. Numa expectativa sádica, tentam decifrar os sinais de que ele já sabe do incidente. Aguardam nova explosão. Ao contrário do dia anterior, o chefe não o chama. Dá a Caruso tempo de se sentar, olhar as mensagens no computador e se servir do primeiro café do dia. Depois se aproxima, cuidadoso. Tem experiência com repórteres temperamentais, com situações como esta. O melhor, sempre acreditou, é pôr para trabalhar, mandar atrás de um boa história. Nada melhor de uma manchete para apagar as mágoas.

É o caso. Um milionário foi morto na porta do prédio. Tinha uma firma de importação e exportação, mas era suspeito de contrabando, lavagem de dinheiro e alguns crimes menores. Tipo de história que se estica por dias

Dá a Caruso outro papel com um endereço.

A polícia já está no local - informa.

Antes de sair, Caruso nota que o chefe está suando. Além de meio surdo, o chefe sua demais, mesmo com o ar condicionado ligado. Uma cachoeira descendo pelas costas, empapando as roupas. O médico disse que o suor é nervoso. Caruso não tem problemas de suor e nem levou um tiro e nem ouviu a explosão de um botijão de gás. Apesar do calor, usa um colete sobre a camisa. No bolso do colete guarda o papel com o endereço e depois dá um tapinha no ombro do chefe. Dá alguns passos, mas pára no meio do caminho e volta até a mesa. Os colegas próxi-mos aguardam. É agora, pensam, mas Caruso só grita de surpresa, para que todos possam ouvir:

Feito bicho.

Depois sai caminhando orgulhoso, o peito estufado, como se tivesse dito a coisa mais inteligente do mundo.

# alexandre rodrigues | 17 de fevereiro Comentários (0) | TrackBack (0)


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