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A respeito do excesso de ironia, nunca é demais lembrar os tristes incidentes que cercam a primeira e única edição do Campeonato Mundial do gênero, realizado em Bratislava. Acorreu à formidável cidade da Eslováquia um número imenso e inesperado de irônicos, todos praticando o próprio talento, com o que criou-se grande confusão. Alguns estavam em sua primeira participação, nunca haviam ido a qualquer das pequenas competições de ironia realizadas nos cinco continentes como preparatórias para o Mundial. Não sabiam, é claro, que só precisavam ser irônicos quando reunidos no Domo Sluzba, centro especialmente construído para o evento e onde se consagraria o maior irônico de todos. Assim, mal pondo os pés no aeroporto, já quando um boy se aproximava e perguntava “Essas malas são suas?”, geralmente respondiam: “Não. Estou só tomando conta”. Nos táxis, os irônicos atormentavam os motoristas. Cada pergunta recebia em troca uma alfinetada, uma frase aguda. “Vamos para o hotel?” “Não. Vamos ficar rodando por aí sem parar”. Ou no restaurante. “Vocês querem pedir?” – perguntava o garçom. “Não. Viemos só descansar nessas suas cadeiras duras”. O favorito para a competição era sem dúvida Woody Medeiros, intelectual, milionário decadente, reacionário e alcoólatra, que sempre fez as suas ironias serem acompanhadas de um bom scotch doze anos, com o quê podia imitar quase à perfeição a voz arrastada e mordaz de George Bernard Shaw. Havia por certo fortes competidores. Dulce Rosalinda, portuguesa, sabia citar de cor todas as frases famosas de Dorothy Parker, enquanto Luis B. Mayer, homossexual e homônimo do famoso gângster do cinema, fazia o mesmo com Oscar Wilde. Encontravam-se na cidade outros nomes, mas nenhum despertava tanta curiosidade quanto Paulo Francis, brasileiro, que, abandonando o retiro ao qual se impôs depois de fingir a própria morte, decidira voltar ao mundo mostrando que ainda era o maior irônico de todos. Por isso, a cada comentário ou pergunta, respondia sempre: “WAAAL!” Assim, com uma multidão de irônicos pelas ruas, os teatros, cafés e hotéis, deu-se que na cidade já ninguém conseguia se comunicar. O evento ainda não havia começado, estava marcado para o final de semana, porém muitos deles, tendo chegado antes para conhecer Bratislava, andavam pelas ruas sendo irônicos o tempo todo e levando à loucura os moradores em geral, muitas vezes ofendidos com as práticas dos visitantes, que consideravam simplesmente falta de educação. No dia da abertura do campeonato, competidores ainda desembarcavam quando a insatisfação atingiu níveis gigantescos. Uma multidão, reunida espontaneamente para falar mal dos visitantes, decidiu dar-lhes uma lição, se dirigindo para o Domo Sluzba, local onde centenas de irônicos já estavam presentes e exercitavam frases de efeito uns para os outros, confiantes numa boa performance. O que ninguém esperava era que o público cercasse o ginásio e começasse a quebrar as dependências, o que de fato aconteceu, causando pânico dentro e fora do local, incêndios, sabotagem, quebra-quebra, vandalismo e um blecaute que deixou a cidade durante dias sem energia. Diante da revolta popular, os organizadores anunciaram prontamente o cancelamento do torneio. Os irônicos voltaram para casa frustrados, se perguntando se o mundo está mesmo preparado para uma competição de tamanha expressão, lotando aviões e perturbando passageiros e tripulação com suas frases cortantes. Houve, contudo, alguns mais corajosos, que em vez de fugir, continuaram em Bratislava exercitando a ironia e até conquistando certa simpatia popular, quando tudo se tornou um hábito. Destes, é o caso de lembrar de H. D. Rocinante, intelectual de língua afiada que só não chegou a gozar de fama e riqueza plenas porque um pedaço de satélite americano caiu sobre seu prédio no mesmo momento em que vomitava um guaxinim, causando uma perda bastante lamentada. # alexandre rodrigues | 26 de abril Comentários (6) | TrackBack (0) |
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