eu
Popular
Os massa
Massa Machine
alex.rod@terra.com.br
os outros
Norma Propp
Agência Fantasma
Quicoman
Hotel Hell
Martelada
Senatore
Big Muff
Panarotto
Failbetter
Narrativas de Niill
Caffeine
Rancho Carne
Caveat Emptor
A Nova Corja
One Hundred..
Smell of mustard..

(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

« | Home | »

Gênio, gênio, gênio

PORTO MATA TRUTA

NÃO FOI UMA PRIVADA SUSPENSA SOBRE A IMAGINAÇÃO. Foi realidade.

Uma truta arco-íris de cinco centímetros morreu. Sua vida foi tirada para sempre das águas terrenas com um gole de vinho do porto que lhe deram.

É contrário à ordem natural da morte uma truta morrer com um gole de vinho do porto.

Está certo que uma truta morra por ter o pescoço quebrado por um pescador e seja jogada no cesto, ou que uma truta morra por causa de um fungo que se arrastou como formiga cor-de-açúcar por seu corpo até que ela, a truta, acabasse no açucareiro da morte.

Está certo que uma truta fique presa em um poço que seca no fim do verão ou seja apanhada pelas garras de uma ave ou pelas patas de um animal.

Está certo até que uma truta morra de poluição em um rio de sufocante excremento humano.

Tem trutas que morrem de velhas e suas barbas brancas são levadas para o mar.

Tudo isso está na ordem natural da morte; mas uma truta morrer de um
gole de vinho do porto, isso é outra conversa.

Nada existe sobre isso no “Tratado de Halieutica”, do Boke of St. Albans, publicado em 1496. Nada no Táticas Testadas para Águas Turvas, de H.C. Cutclife, publicado em 1910. Nenhuma em referência em Tretas contra a Truta, de Beatrice Cook, publicado em 1955. Nenhuma referência em Memórias Ribeirinhas, de Richard Franck, publicado em 1694. Nem uma palavra em De Vara na Mão, de W. C. Prime, de 1873. Nada em Dando Tratos à Truta, de Jim Quick, de 1957. Nada a respeito em Experiências com Peixes e Frutas, de John Taverner, publicado em 1600. Nada em Os Rios Nunca Dormem, de Roderick L. Haig Brown, publicado em 1946. Nada em Até que o Peixe nos Separe, de Beatrice Cook, de 1949. Nada em O que pensa a Truta do Engodo, de coronel E. W. Harding, publicado em 1931. Nada em Estudos Ripuários, de Charles Kingsley, publicado em 1859. Nada em Trutamania, de Robert Traver, de 1960.

Nenhuma referência em O Sol e o Engodo, de J. W. Dunne, de 1924. Nada em Pescar é Fácil, de Ray Bergman, publicado em 1932. Nada em A Pesca Intramuros, de Ernest G. Schviebert Jr., publicado em 1955. Nada em A Arte de Pescar na Enxurrada, de H. C. Cutcliffe, publicado em 1853. Nem uma palavra em Iscas Velhas de Roupagem Nova, de C. E. Walker, de 1898. Nada em Pescando na Enchente, de Roderick L. Haig Brown, de 1951. Nada em O Pescador Teimoso e a Truta de Encosta, de Charles Bradford, publicado em 1916. Nada em Lições de Pesca para Mulheres, de Chistie Farrington, publicado em 1951. Nada em Beira-Rio do Eldorado em Nova Zelândia, de Zane Grey, de 1926. Nada em Vade-Mecum do Pescador, de G. C. Bainbridge, publicado em 1816.

Não há registro no mundo de uma truta que tivesse morrido por beber vinho do porto.

Vamos ver quem foi o Carrasco-Mor. Levantamos cedo, escuro ainda. Ele entrou a bem dizer sorrindo na cozinha e tomamos o café.

Batata frita, ovos e café.

- Ó putoreba, me passe o sol – ele disse.

Os apetrechos já estavam no carro. Entramos e nos mandamos. Ao alvorecer já estávamos na estrada do pé da serra e por ela entramos na aurora.

A luz atrás das árvores era como entrar numa gradativa e muito esquisita loja de departamentos.

- Moça bonita aquela de ontem – ele disse.

- Muito. Você fez bem – eu disse.

- Deu entrada, não mando pro bispo – ele disse.

O riacho era um merdinha de poucos quilômetros, mas valente em trutas. Deixamos o carro e caminhamos menos de um quilômetro ladeira abaixo até o riacho. Preparei meus apetrechos. Ele tirou da jaqueta uma garrafa de vinho do porto e disse: - Vai?

- Não, obrigado.

Ele deu uma boa bicada e sacudiu a cabeça. – Sabe o que esse riachinho me lembra?

- Não faço idéia – respondi, prendendo na linha uma isca pintada de cinzento e amarelo.

- A vagina de Evangelina, sonho constante de minha vida e guia da minha juventude.

- É isso aí – respondi.

- Longfellow foi o Henry Miller da minha infância.

- Que bom.

Lancei o anzol em um poço que ficava no meio de uma coroa de cipós de espinho. Os espinhos giravam e giravam. Não era possível que tivessem caído de árvores. Eles pareciam muito satisfeitos e naturais no poço, como se o poço os tivesse criado em galhos de água. No terceiro lanço senti uma fisgada. Puxei, o anzol veio limpo.

- Cara, vou ficar olhando você pescar – disse ele. – A tela roubada está na casa ao lado.

Fui pescando riacho acima, chegando cada vez mais perto dos estreitos degraus da grota. Entrei nele como se entrasse numa grande loja. Peguei três trutas no departamento de achados e perdidos. Ele nem chegou a armar seu equipamento. Só fez me acompanhar, bebendo porto e cutucando o mundo com um graveto.

- É um belo riacho – disse ele. – Me lembra o aparelho de escuta de Evangelina.

Chegamos a um poço grande formado pelo riacho caindo na

seção de brinquedos. No começo do poço a água era como creme e depois virava espelho e refletia a sombra de uma árvore enorme. O sol já estava alto. Podia-se vê-lo descendo a montanha.

Lancei o anzol no creme e deixei a linha ir descendo até passar debaixo de um galho comprido da árvore, no qual pousava um passarinho.

Agora!

Dei o arranco e a truta apareceu se debatendo.

- Corrida de girafa no Kilimanjaro – gritou ele, e a cada salto da truta ele saltava também.

- Corrida de abelhas no Everest! – gritou.

Não tendo levado rede, batalhei com a truta até a margem do riacho e a puxei para a terra.

A truta tinha uma grande listra vermelha de um lado.

Era uma bela arco-íris.

- Maravilha – disse ele.

Ele a pegou, ela se debatendo nas mãos dele.

- Quebre a espinha dela – mandei.

- Tenho uma idéia melhor – ele disse. – Antes de matá-la, me deixe ao menos aliviar a entrada dela na morte. Esta truta precisa de um drinque.

Tirou do bolso a garrafa de vinho, desarrolohou e despejou uma dose-família na boca da truta.

A truta entrou em espasmo.

Ela tremia maluca como telescópio em terremoto. A boca se escancarava e fechava estralando como se tivesse dentes de gente.

Ele pousou a truta numa pedra branca, de cabeça para baixo.

Um filete de vinho escorreu da boca da truta, deixando mancha na pedra.

Ela parou de se mexer.

- Morreu feliz – disse ele.

- A minha ode aos Alcoólicos Anônimos
.

Richard Brautigan - Pescar truta na América

# alexandre rodrigues | 29 de julho Comentários (0) | TrackBack (0)


outras coisas
Nerve
Gonzo
Gardenal
Salon
The Sun
Guardian
Slate
Vice
Found Magazine
Darwin Awards
A respeito do mundo
Alex Ross
Kurt Vonnegut Jr
The Sketches
Humorismo paranóico
Cybercomix
Robert Anton Wilson
Frank Miller
Stanislaw Lem
Ô, Reeeem...
Freak Machine
Anthony Burgess
Richard Brautigan