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(Idéias: Alexandre Rodrigues. Idéias e digitação: Luzia Lindenbaum)

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Um poeta ruim

Na noite em que Firpo perdeu a luta, comeu-se o primeiro poeta ruim.

Longe do ambiente suarento do ringue, da insanidade febril dos torcedores, bookmakers e jornalistas, dos rostos e punhos fechados dos pugilistas, um grupo de ilustres convivas reuniu-se em uma casa de muito bom gosto, cuja localização nunca ficou para a posteridade, mas que, sabe-se pela descrição, era um ambiente requintado, com guirlandas, sancas e jardins por toda parte. Neste paraíso, um dos poucos onde cabia bem a mistura do rococó com o neoclássico, podia-se encontrar em um canto a figura esquálida de Kafka, do outro, a matreirice de Borges ou os eternos fanfarrões Fitzgerald e Hemingway, todos a seu modo ansiosos pelo espetáculo, por assim dizer, pelo jantar.

Em outra parte, tendo ao fundo as flores roxas e vermelhas do papel de parede, Faulkner reclamava da presença do pianista, que mesmo do outro lado da propriedade ainda o incomodava. Sua irritação com as melodias e, mais do que tudo, pelo tlim-tlim repetido das teclas do piano, exigia uma atitude mais incisiva.

– Odeio música, todos sabem disso. Só pode ser uma provocação – gritava aos que passavam, muitos dos quais, sem conhecê-lo, estranhavam aquele homenzinho rude e mal humorado, cuja cabeleira prateada e os grandes bigodes davam à face uma expressão cômica. Tomavam-no por uma espécie de louco ou de bêbado, como muitos deviam existir entre os presentes.

Na noite em que Firpo foi roubado (e Dempsey, humilhado mas não derrotado, voltou ao ringue muito depois da contagem de dez levado pelas mãos dos repórteres sensacionalistas, cada um dono de uma expressão própria de orgulho e rudeza, com um charuto na boca e um pedaço de papel colado no chapéu onde tinham escrito o próprio nome para seguir a moda da época: MAUGHAN, CRONIN, FINNEGAN, WEST, etc), a base do prato principal foi o corpo, abatido, destrinchado e desossado, do poeta ruim húngaro Erwol Grolege.

Foi escolhido por ter demonstrado por anos a fio ser possuidor de um talento medíocre que o levava a cometer em série poemas ruins que misturavam a denúncia do autoritarismo com o prosaico mais lamentável:

As sombras cinzentas que caem sobre o Velho Mundo
Sufocam a mais tênue liberdade
E eu aqui me pergunto:
O que foi mesmo que comi ontem?


Antes de ser servido o banquete, numa homenagem que se repetiria sempre, foram lidos alguns versos do poeta ruim. A cada palavra, a cada frase, o público passou a reagir com furor. Alguns davam gargalhadas, outros não cessavam de gritar, sem medo de parecer inconvenientes. Tornou-se uma algazarra, como aquela que seguiu o momento infame, quando Dempsey, de volta ao ringue com a ajuda injusta, acertou Firpo repetidas vezes no chão (sua desculpa foi ainda mais infame: atordoado, não sabia o que estava fazendo) mostrando que o campeão às vezes não merece sê-lo e o derrotado pode ser o contrário. Mesmo o circunspecto Kafka, bastante deslocado, foi visto dando uma tímida risada, recolhendo-se em seguida ao quarto, pois não se sentia bem.

Já Hemingway, acomodado numa mesa cuja toalha, quadriculada, havia trazido de casa, deu o mote para o banquete:

- Pois se era tão ruim, que sirvam logo esse infeliz.

Grolege por fim foi levado à mesa e sobre as travessas todos os famintos avançaram sem nenhuma elegância para reservar o próprio pedaço. Da noite, ficou um registro final: o momento em que, saciada a fome de tantos, com um poeta ruim à espera de seus sucos gástricos, os presentes descansaram suas taças de champagne para aplaudir o cozinheiro. Este, em resposta, curvou-se numa reverência e agradeceu os elogios sobre a comida, notadamente do acompanhamento de batatas coradas e coentro, que, na opinião de todos, dava mesmo à carne um gosto todo especial.

# alexandre rodrigues | 10 de janeiro Comentários (0) | TrackBack (0)


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