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outubro 27, 2007

O craque do bairro

Marquinhos foi o maior jogador com quem tive a oportunidade de compartilhar uma cancha de futebol. Muito antes de Romário, já apostava quantas janelinhas conseguiria dar nos adversários ou que faria um gol de bicicleta em determinada partida. A diferença é que sua moeda era a cerveja.

Marquinhos foi o segundo de uma família de quatro irmãos, todos bons jogadores de bola. Em ordem decrescente, Abel, que certa vez derrubou uma trave com uma paulada - tudo bem que era de madeira, mas o que vale é que foi ao chão -, Fernando, ou Fê, extremamente habilidoso também, e Júnior, que não tive a felicidade de ver jogar a valer.

Marquinhos era quem jogava mais, não apenas entre os irmãos, mas também entre toda a gurizada do Parque Residencial Marechal Rondon, um bairro de nome bonito que abrigava uma corja de vadios que bebiam cachaça com refrigerante em construções e escutavam Rap Brasil e Racionais com a complacência confusa que a adolescência permite.

Era canhoto, o diabo. Atuava como meia avançado, com extrema facilidade para controlar a bola, velocidade e chute certeiro. Sua habilidade era demasiada, chegava a provocar. Fez história no bairro compondo o temido time do Alemanha - referência à rua em que morava a maiora dos jogadores do time. Faziam grandes clássicos e ficaram invictos durante sei lá quantas semanas. Marquinhos tomava pau como uma cadela sarnenta, mas parecia que jogar cada vez mais.

Muitas vezes fomos companheiros de time, especialmente quando formamos uma equipe forte no futebol de salão. No gol, Cueca. Na zaga, Éder e eu. Chico, que depois andou jogando no Santa Cruz e no Avenida, Marquinhos, Zezinho e Malabim, apelido que fazia referência à forma peculiar do melão do rapaz. Era um time forte. O primeiro feito que me salta à memória foi certa vez quando enfrentamos um bom time que levava até torcida para a quadra, um monte de mulheres gritando e atucanando. Era formado por gringos altos, muitos nossos desafetos das ruas e dos bares. O que aconteceu não foi menos que espetacular e gerou um belo trago de canha na esquina sagrada para comemorar e fazer os comentários do pós-jogo.

(Na partida, a correria foi grande, pau e pau. Tive a oportunidade de fazer o lance mais habilidoso da minha vida, sem querer. Me tocaram uma bola rasteira, forte, eu estava de costas para o adversário. Então, sei lá por que, bati o bico do pé embaixo da bola e ela subiu pouquinho acima do nível da cabeça. Atrás de mim vinha um adversário desabalado, que acabou passando por baixo da bola e transformou o lance num lindo chapéu, gerando um "ohh" geral.)

Estávamos perdendo por uns dois gols de diferença e já ouvíamos os gritos de olé, mas, não sei como, viramos o jogo. Marquinhos parecia dominado por um espírito infernal: é o que acontece quando os jogadores de excelente técnica são tomados pela vontade absurda de vencer. Quando o cara está perdendo, dribla todo mundo, faz o gol, corre alucinado para pegar a bola nas redes, não ri e volta para o meio do campo com os olhos fixos, esperando o juiz recomeçar para sair matando o adversário de novo. E assim foi. Marquinhos virou o jogo, que nesta altura era uma fumaceira digna de La Plata. Como bons guris balaqueiros, começamos a cair e amarrar a partida. Também porque estávamos mortos, aqueles gringos magros e malditos corriam como o diabo, principalmente um, que não parava nunca e, por ironia, era o que mais detestávamos. Mas Éder e eu juntos éramos uma boa dupla de zaga, entrosada desde os 12 anos, quando jogamos no Esporte Clube Canarinho. Aprendemos um com o outro a superar a vergonha de bater descaradamente. E quando o bólido aguado se aproximava do gol, um de nós saía e dava o primeiro combate, ou com uma alavanca ou empurrando, enquanto o da sobra chegava matando, não raro dando socos e pontapés. E assim foi até o fim, quando o jogo acabou e o pulmão havia expelido todas as porcarias com que costumávamos castigá-lo. Se Marquinhos havia virado o jogo, devíamos ter a dignidade de ao menos segurar o resultado.

Naqula época batíamos bola num campo, metade barro, metade grama. Não sei por que o tempo não estancou naqueles dias, onde o horário de verão nos permitia ficar das quatro da tarde às nove da noite disputando um jogo que nunca acabou. Certa vez, caiu uma chuvarada e tivemos a brilhante idéia: fazer uma partida sem faltas. É claro que o jogo se transformou numa correria infernal, todos caçando os amigos adversários. Foi quando Marquinhos apanhou uma bola de costas para mim. Se ele desse o segundo toque, me driblava certo. Aproveitei a conjuntura favorável para lhe passar um rapa perfeito nas duas pernas. Ele saltou alto e caiu de bunda no chão. "Porra, cara!". Eu achei extremamente engraçado.

Marquinhos tinha uma outra habilidade espantosa. Era capaz de passar uma noite de sábado se entragolando como um condenado e, ainda assim, disputar torneios de futebol aos domingos. Geralmente valiam uma caixa de cerveja e um churrasco. Muitas vezes venceu, outras tantas perdeu. Eu nunca conseguiria ter uma resistência destas mesmo que nascesse mil vezes. Era um cara matreiro, sem dúvida. Feio, com os dentes amarelados pelo fumo desde tempos imemoriais, meio caolho. Mas, mesmo com este quadro da dor, pegava algumas moças gatíssimas, tinha a sabedoria. Apenas não sei encontrava a mesma facilidade que tinha com adversários para fazê-las abrir as pernas.

Não vi o futebol da mesma forma depois que, em 1997, no Beira-Rio, Marquinhos me apontou para os jogadores em campo e disse: "cara, a maioria deles joga a mesma coisa que a gente, só tem mais preparo físico". Era verdade. Duvido que Marquinhos não tivesse potencial para ao menos ser um Sandoval naquele time colorado, caso um pouco mais de dedicação e oportunidade aparecesse no seu horizonte.

Tempos depois, numa noite qualquer, ficamos batendo papo na sua casa, ouvindo músicas bagaceiras num rádio pré-histórico. Foi a vez que mais conversamos sozinhos, tomando um trago com as bebidas do pai dele e colocando água nas garrafas para disfarçar. Até um espumante abrimos e achamos que o momento exigia quebrá-la no meio da rua, para marcar uma data importante, como já havíamos feito dezenas de vezes em outras datas históricas da nossa juventude pseudo-marginal. Neste dia, Marquinhos disse que gostava de me ver jogando, correndo e quebrando tudo, o maior elogio que recebi como boleiro. Revelou ainda que preferia atuar com a camisa número 8, quando sempre imaginei que gostasse mais da famigerada 10. No outro dia, Marquinhos deveria acordar para se inscrever num teste no Inter. Ficamos até alta madrugada bebericando e falando bobagens, dormimos umas quatro horas e fomos ao Beira-Rio, onde dezenas de outros guris se amontoavam no guichê de inscrições. Esperamos umas horas e voltamos para casa dormindo no ônibus. Creio que Marquinhos nunca foi fazer o teste. Depois casou e adquiriu o hábito de jogar cartas num boteco. Até hoje gosto de acreditar que continua apostando e aplicando janelinhas loucamente.

Saudações,
Douglas Ceconello.


Publicado em outubro 27, 2007 2:40 PM

Comentários

Incrível como caras tipo o Marquinhos geralmente tem talento para futebol e trago na mesma medida.
Conheci um cara assim também em Canoas. Ele ainda jogou na Série Ouro um ano, mas se perdeu nas noitadas. Tá com uma barriga maior que a minha, mas quando tenho a felicidade de jogar com ele sei que o chute vai, invarialvelmente, no ângulo.

Bela história, Douglas.

Publicado por: Giordano em outubro 27, 2007 3:56 PM

Grande Douglas. Eu não conhecia este teu lado boleiro, nem a Lili, diga-se de passagem. Mas que é uma grande história, isto é. Quantos Marquinhos não devem ter por aí? Mas a peneira é tão estreita que muitos Marquinhos acabam ficando de fora. Uma pena, pois o que tem de perna-de-pau jogando nestes times brasileiros hoje em dia não é brincadeira. Tem jogo que é duro de assistir de tão ruim! Faltam mais Maruinhos nos nossos times, isto sim. Um abraço e Feliz Aniversário adiantado em um dia!

Publicado por: Fernando Weber em outubro 27, 2007 8:16 PM

MELHOR CONTO DA MINHA VIDA.

(para gostar de ler, volume 5.)

Publicado por: mateus em outubro 27, 2007 9:49 PM

Chorei.

Publicado por: Guto em outubro 28, 2007 12:48 PM

"Mas, mesmo com este quadro da dor, pegava algumas moças gatíssimas, tinha a sabedoria. Apenas não sei encontrava a mesma facilidade que tinha com adversários para fazê-las abrir as pernas."

HAHAHAHAHAHAAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA

Publicado por: Gabriel Teixeira em outubro 28, 2007 2:51 PM

Genial, simplesmente.

Publicado por: Marcelo em outubro 28, 2007 6:02 PM

seria síndrome de EDUARDO GALEANO?
seria doping de EDUARDO GALEANO?
seria o próprio EDUARDO GALEANO?

Publicado por: FERN em outubro 28, 2007 7:26 PM

Obrigado, Douglas.
Espero que esta seja a primeira da série de colunas dominicais.

Publicado por: Paul em outubro 28, 2007 9:05 PM

Obrigado, gurizada.

E agradeço muito, Fernando. Com alguma disciplina, certamente Marquinhos pegaria uma vaga em metade dos times da Primeira Divisão. Legal tu aparecer por aqui. Mande um abraço para todo o pessoal.

Publicado por: Douglas Ceconello em outubro 28, 2007 9:14 PM

que coisa linda!

Publicado por: fernando em outubro 28, 2007 9:30 PM

"Espero que esta seja a primeira da série de colunas dominicais."
boa pedida.

Publicado por: izabel em outubro 28, 2007 9:58 PM

Comeu?

Publicado por: Ros em outubro 28, 2007 10:04 PM

Que história legal, chega a emocionar! Se eu não tivesse cansado ate escreveria mais elogiando...

Publicado por: Robson em outubro 28, 2007 11:53 PM

Bah, ninguém percebeu um parabéns velado ali para o Ceconello?

Parabéns, cara! Que continues escrevendo bem assim. E como forma de mostrar minhas saudações, te digo que já encomendei um presente. Acho que tu vais gostar:

http://www.sofutebolbrasil.com/produtos/928832.asp


Abra$$o.

Publicado por: Francisco Luz em outubro 29, 2007 12:17 AM

Esse Canarinho é o de Cachoeirinha?

Publicado por: Anonymous em outubro 29, 2007 7:20 AM

Vai ser difícil começar as colunas dominicais com este texto porque ele foi escrito e publicado no sábado. rhsdhs Mas estou brincando, entendi a intenção e agradeço pelo interesse. Vou ver se começo a fazer algo parecido nos finais de semana.

E agradeço muito, Francisco. Inclusive pelo presente, que servirá para um ritual de exorcização do lado podre do futebol.

E, sim, claro que sim, este é o famoso Canarinho de Cachoeirinha, do qual tenho orgulho de já ter envergado a lendária jaqueta número três, numa mesma época que SAPO, CHAMBINHO, DECO, PACO, FININHO e outros que não lembro agora.

Publicado por: Douglas Ceconello em outubro 29, 2007 8:28 AM

Joguei no Canarinho, 3 ou 4 partidas no máximo. Criei-me jogando no Vera, mas como jogava com o Chambinho no Zequinha, ele me convidou para algumas partidas.
Desses que tu falaste, além do Chambinho claro, eu conheço o Deco. Mas tinha também o Batata (o pai dele tinha um mercado na Fátima), Tiago Tetamante (tetinha), Gabriel que morava na MVII...
Bons tempo aqueles

Publicado por: Beto Borracho em outubro 29, 2007 9:16 AM

O Deco se duvidar ainda tem aquela TL vermelha.

Publicado por: Beto Borracho em outubro 29, 2007 9:23 AM

usadhuasdhuasud

Sensacional. Se bobear, até já jogamos juntos. Ô mundinho.

Deco era meu amigo de infância. Baita zagueiro. Também treinei no São José, mas por pouco tempo.

Publicado por: Douglas Ceconello em outubro 29, 2007 10:10 AM

A última vez que falei com ele foi na MCM do Ritter. Realmente, era um baita zagueiro, estilo Mauro Galvão.

Publicado por: Beto em outubro 29, 2007 10:16 AM

Beto...vera=vera cruz?

Publicado por: Carlos em outubro 29, 2007 10:33 AM

Vera = Veranópolis . Clube de um bairro, que leva o mesmo nome, de Cachoeirinha.
Obs. As melhores festas que essa cidade já teve foram realizadas nesse clube, com o grande e inigualável DJ Roger, que também fazia ponta na extinta Universal (As Borbulhantes da Pepsi, alguém lembra disso?) com o “Bibo Show Nunes”.

Publicado por: Beto em outubro 29, 2007 12:20 PM

"Aprendemos um com o outro a superar a vergonha de bater descaradamente."

Essa foi a coisa mais importante que eu aprendi jogando futebol.

Publicado por: Marcelo Brazil em outubro 29, 2007 12:28 PM

Hehehe! Boa Douglas! Mas cabe lembrar que a ZH de domingo também sempre chega antes de anoitecer o sábado.
Suellen copiando o MAINSTREAM!
dgsadasjdashjdhasj

Publicado por: Paul em outubro 29, 2007 12:43 PM

Era só o que faltava, o Beto e o Douglas brincaram de Comandos em Ação quando pequenos!

Publicado por: PILANTRA do Léo em outubro 29, 2007 12:44 PM

belíssima crônica.

Publicado por: Luís Felipe em outubro 29, 2007 3:08 PM

Fez me lembrar uma história do Gaba, grande centroavante do Colégio Rio Branco, onde jogava o Gilson cabeção, centroavante ruim do Grêmio. Só que o Gaba era muito bom.
Mas sabe como é, não tinha aquela disciplina de atleta, mas a história quem contava era o Gaba, e dizia que o seu irmão mais velho era bom de bola e foi fazer teste no Inter do Seu Abílio.
O cara era indiabrado, pegou a bola e deu uma de Garrincha saiu driblando todo mundo até a linha de fundo, chegando lá parou e voltou com a bola, driblando novamente.
Na segunda vez que o guri pegou a bola e começou a entortar todo o outro time diz ele que o velho Abílio mandou o guri sair do treino e ir prá casa.

Publicado por: Luiz Fernando em outubro 29, 2007 3:36 PM

conheci um ou outro Marquinhos tbm... digo os nomes pra que pelo menos não se percam no tempo... aí vão dois: Papu e Miguel (Anderson).

esse papo de "só precisaríamos de maior preparo físico" estava tendo com amigos ontem... bem trabalhados, a disciplina tática e o preparo físico formam a maioria dos jogadores dos nossos times...

Publicado por: Rômulo Arbo em outubro 29, 2007 4:10 PM

conheci um ou outro Marquinhos tbm... digo os nomes pra que pelo menos não se percam no tempo... aí vão dois: Papu e Miguel (Anderson).

esse papo de "só precisaríamos de maior preparo físico" estava tendo com amigos ontem... bem trabalhados, a disciplina tática e o preparo físico formam a maioria dos jogadores dos nossos times...

Publicado por: Rômulo Arbo em outubro 29, 2007 4:13 PM

conheci um ou outro Marquinhos tbm... digo os nomes pra que pelo menos não se percam no tempo... aí vão dois: Papu e Miguel (Anderson).

esse papo de "só precisaríamos de maior preparo físico" estava tendo com amigos ontem... bem trabalhados, a disciplina tática e o preparo físico formam a maioria dos jogadores dos nossos times...

Publicado por: rômulo arbo em outubro 29, 2007 4:17 PM

tentei o f5, ele não me ajudou

Publicado por: Rômulo em outubro 29, 2007 4:20 PM

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