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Tabule doce

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Ainda que normalmente associado apenas ao paladar, o ritual de se alimentar tem muito de visão, olfato e até mesmo de tato, sabemos. Por mais que separadamente os três últimos sejam apenas sentidos auxiliares (que muitas vezes podem confundir e atrapalhar – muitos são os casos de bons alimentos que não parecem apetitosos, por exemplo), juntos eles têm força suficiente para formar um bom juízo sobre uma refeição. Ou seja, lançando mão da visão, do olfato e do tato – e com um cadinho de imaginação, admito – é possível formar uma sólida opinião sobre um alimento, mesmo sem colocá-lo em contato com uma papila gustativa sequer.

É bem verdade que ter conhecimento de causa ajuda muito. No caso dos avaliados neste texto (já disse que é sobre os doces árabes? Em breve, então, em breve), posso afirmar categoricamente que sei o que estou dizendo. Não sobre eles especificamente, que nunca provei, mas sobre a categoria geral a que pertencem – os doces –, minha especialidade.
Minha vó diz que como até chumbo derretido. Eu diria que sim, desde que misturado com um pouco de açúcar de confeiteiro, pra dar um gostinho. Gosto de toda sorte de guloseimas, dos mais caseiros aos mais industrializados. Do doce de abóbora à barra de chocolate, passando por sorvete, tortas, mousses e qualquer outro quitute açucarado.
Mais que um apreciador, sou dotado de bom conhecimento técnico e teórico da manufatura de sobremesas também. Durante alguns anos minha mãe foi doceira profissional, e eu, seu ajudante esporádico. Adquiri valiosos conhecimentos sobre ingredientes, misturas, sabores, modos de preparo e segredos culinários em geral.
E foi munido de todo esse know how que decidi encarar a experiência de provar as sobremesas do Baalbek. Sou um grande apreciador da culinária árabe e do citado restaurante em especial, mas confesso que nunca tinha ido além dos kibes e esfihas. No dia em questão, entretanto, pedimos ao garçom pelas sobremesas.
Seguindo o costume do local, o garçom trouxe todas as opções de doces e dispôs sobre a mesa: uma espécie de broa coberta com açúcar, balas de goma, um tipo de barra de cereal, folhado, folhado recheado com nozes, um bolo e um misterioso doce com aspecto de pedra de calcário.
De cara, a broa me pareceu a menos apetitosa. Parecia ser extremamente seca, o que é um erro primário para um doce. Refuguei. Um dos meus acompanhantes se arriscou a provar, acreditando que deveria haver um recheio ali. Não tinha, era mesmo seca – e dura.
As balas de goma e o pseudocereal nem menciono. Isso eu como na quitanda da esquina. E se duvidar ainda ganho um sorvete seco com um anel em cima de brinde.
O primeiro folhado também cometia o erro da broa: muito seco. Cheguei a cogitar alguma relação bonita entre os doces e o modo de vida dos árabes. Parecia que nem na hora de degustar uma sobremesa eles podiam esquecer da terra seca onde viviam.
O segundo folhado, o que tinha nozes, eu já tinha provado semelhante no Habib’s. Sei que cometi o pecado de avaliar um alimento pela sua versão fast food, mas se não tinha empolgado nem um pouco lá, ao lado de sorvetes e brownies, não seria na companhia de broas secas que se tornaria saboroso.
O bolo era um bolo. “O melhorzinho de todos” me definiu depois um integrante da mesa. Claro, era o mais molhadinho ali. Passei mesmo assim.
A maior decepção, no entanto, foi mesmo a pedra de calcário. Olhando, até parecia uma mousse, com seu aspecto de superfície lunar, cheio de pequenos furos. O engano durou até o momento em que ele foi pressionado com a lateral de um garfo. Duro feito pedra mesmo. E ainda mais seco que a broa. Eu não esperaria nada diferente de um doce que parece aquelas pedras que as mulheres usam pra lixar seus calcanhares.
Era o fim das possibilidades, e eu seguia sem ânimo de provar nada. Por mais que estivesse satisfeito, havia um espaço pra uma doçura reservado pelo meu estômago. Os olhos, as mãos e o nariz não deixaram nada chegar lá.

Saulo | 9.01.2006, 13:38 | Comentários (5) | TrackBack (0)