O cadafalso dos cansados

Com uma semana de atraso, mas por motivos nobre$, aqui vai a reportagem sobre o ato do Cansei na Sé:

Eu conseguia escutar os gritos de ordem da organização do "Cansei" do subsolo da Estacão de Metrô da Sé. Pensei: "Jesus, será que esses caras resolveram derrubar o governo antes do horário?". Afinal, eram 11h27 e o protesto estava marcado para o meio-dia. Ao sair da escada rolante, as caixas de som começaram a ecoar um tunt-tunt-tunt em frente a uma praça desprovida de ouvintes.

Um bêbado passa duas vezes por mim e repete, como um mantra:" O [Hugo] Chávez deveria dar uma esmola para esses pequeno-burgueses nos deixarem em paz". "Pode apostar", retruquei, e me dirigi à praça da catedral. No caminho, anoto os nomes das empresas de segurança particulares postadas ao lado da sede da Ordem dos Advogados do Brasil/ SP - principal articuladora do evento - nas cercanias do perímetro, a Operacional Escolta e a Guarda Patrimonial.

Palanque armado, gente sentada atrás dele nas escadarias da igreja, cujas instalações foram negadas por dom Odílio. Cerca de 30 pessoas aguardavam a festa começar. Pode incluir aí mendigos chapados de crack, como o que estava estabacado nos degraus à esquerda da construção.

Às 11h39, anunciaram que o comício iria começar com meia-hora de atraso, mas davam certeza da presença de Ivete Sangalo. Alguma coisa não funcionou, porque a maioria dos transeuntes sem o adesivo do "Cansei" colado em qualquer parte do corpo estavam alheios às grades que protegeriam Hebe Camargo e companhia dos manifestantes da planície, mais preocupados em aproveitar a hora do almoço para entrar nas filas dos bancos e pagar suas contas.

Uma faixa prende minha atenção em meio aos poucos que se reúnem na praça: "A TV Globo e a TV Record incentivam a prostituição infantil. Destróem [sic] as famílias. Presidente, queremos uma impren... Decente". Faltou espaço para as reclamações, mas depois ele colocou um adesivo do "Cansei" na testa.

Para variar, meu subconsciente fez com que eu vestisse uma camiseta nada aconselhável para a ocasião. Uma senhora que distribuía panfletos do encontro leu a frase "Traidor do movimento" e disse que eu não devia estar ali. "Tudo pelos direitos civis", pensei, antes de tentar me esconder do barulho transfigurado de Creedence Clearwater com o qual a mesa de som tentou estourar meus tímpanos.

Mesmo depois do meio-dia, o público presente passava razoavelmente do número de habituès da Praça da Sé. Um dos organizadores vai ao microfone e pede desesperadamente que quem esteja no Centro de São Paulo apareça. É compreensível. Menos de um quarto da área está ocupada - a ocupação passa mal e porcamente da mesa de som, a vinte metros do palco.

Avisto uma mulher com a camiseta do Partido Verde. Será que vão expulsá-la, como houve com alguns tucanos na passeata do dia 4 de agosto? Ou pior: tirar seu emblema? Aos poucos, gente engravatada e munidas de câmeras digitais chegam para o protesto.

Marcar o início dos trabalhos ao meio-dia pode ter soado bacana por causa do trânsito na região, mas não contavam com o sol que rachava o melão. Tinha até advogado com guarda-chuva para se resguardar dos raios. A maioria dos presentes buscava abrigo às sombras das palmeiras e parecia que nem se Jesus aparecesse ao lado de Ivete elas sairiam do lugar.

O fiscal, líder comunitário e coordenador de trabalhos políticos Vicente de Oliveira, 58 anos, me pergunta que diabos está acontecendo ali. Tento explicar da maneira mais educada que posso, mas ele ressalta que só está ali de passagem e que "apóia" o presidente da OAB/ SP, Luiz Borges D'Urso. E vai embora.

Tento atravessar a rua para me refugiar de tudo aquilo para tomar uma cerveja em um pé sujo, mas respeitar a faixa de segurança passa longe da cabeça do motorista do carro importado que quase me atropelou como a civilidade tão defendida ali.

Depois do pit-stop, perto das 13h, continuava a minguar gente para o comício. De repente, um burburinho e todos começam a subir a Sé em direção ao palanque. Conseguiram ocupar um terço do lugar. O contraste entre os locais e os haoles era evidente. O problema é que nessa praia os estangeiros não fazem questão de surfar e deixam isso muito claro. Bastava chegar perto do curral onde os principais manifestantes e a imprensa oficial estavam.

A senha do microfone foi irresistível: "A Hebe Camargo, gente. Ela não é uma gracinha?". E avisa: "Dentro de alguns minutos teremos o minuto de silêncio". Um senhor me aborda e pergunta - por causa da camiseta - se sou a favor da "quadrilha" em Brasília. "Nem eu me apóio direito", respondo, enquanto me afasto dele sem olhar para trás.

Resolvo inverter o jogo e vou conversar com uma pessoa que segurava uma bandeira do Brasil - distribuída gratuitamente com uma de São Paulo - e uma lata de cerveja: "Só com uma dessas para agüentar isso, hein?". Mas minha tentativa de criar reciprocidade foi para o vinagre. "E cadê os jovens que deveriam estar aqui, belo? Eles não querem saber de mais nada". De fato, o ambiente carecia de uma roda punk. "Talvez eles tenham medo de vir à Sé", respondo. "Pois você vê, belo, eu fui preso na ditadura por esses merdinhas". São jovens como você que podem tornar esse país melhor", acrescenta.

Volto. A. Me. Afastar. Sem. Olhar. Para. Trás.

Durante o minuto de silêncio, pessoas gralhavam aos celulares. Na cerimônia inter-religiosa, chamaram o chefe da congragação judaica. Fiel à natureza brasileira, alguém completa: "Mas encostaram o [Henry] Sobel mesmo, hein?".

Quando finalmente entro no curral dos jornalistas e personalidades, avisto um alemão barrigudo vestido de uma camiseta com a frase: "Tenho orgulho de ter amigos negros". Durante a execução do hino nacional, familiares das vítimas do vôo 3054 tentaram subir ao palco, mas só serviram de corredor polonês para que ao final do show as estrelas pudessem sair bem na foto e na TV, com suas imagens associadas ao compadecimento da sociedade diante da tragédia. Havia uma escada secundária completamente vazia para eles irem embora, mas preferiram navegar na semiótica. Uma cena lamentável.

Ao final, membros da OAB/ SP soltavam gargalhadas. "Eu ainda estou aqui na frente da igreja, meu, mas já estou indo aí para almoçar". Antes de ir embora, finalmente consegui subir ao palco. As pessoas continuavam ali, paradas, como se a esperar o fim do horário do rango. Na saída, uma cena que resume a minha vontade depois de tudo que assisti: três pessoas correndo e cantando "Cansei de lero-lero, quero ser analfabeto".

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