por Marcelo Firpo

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Xeque-mate

A Gilmara foi minha colega na segunda ou terceira série do colégio. Talvez não me lembrasse dela se não tivesse usado seu nome para batizar o Fator Gilmara. E certamente não teria usado o seu nome para batizar o Fator Gilmara se ela não tivesse feito o que fez naquela tarde ensolarada, há cerca de vinte e dois anos.

Gilmara estudava no Anchieta porque era filha de uma servente. Isso devia ser bem complicado pra ela, porque na prática tinha que conviver com quarenta alunos de outra casta, a grande maioria ricos e mimados. Eu também não era dos mais abonados, ter me matriculado lá foi mais um ato de teimosia dos meus pais do que uma decorrência natural, mas estava mais integrado ao ambiente que a Gilmara, que ainda por cima era negra. Espero de coração que aqueles anos difíceis que ela passou por lá tenham compensado na forma de uma boa educação e um bom emprego. Dito isso, voltemos àquela tarde ensolarada.

Gilmara sentava perto da janela, bem no fundo, a última classe de todas. Talvez fosse o jeito que achou de não chamar muito a atenção. Era quieta e assustadiça, o que é facilmente explicável. Não era das mais estudiosas, mas isso não vem muito ao caso. O que vem realmente ao caso foi o que ela fez.

Estávamos todos copiando a matéria do quadro-negro em silêncio, matemática, talvez, quando, lá dos confins da sala, ouvimos um grito agoniado de socorro.

Levantamos todos, a professora abandonou seu posto e em segundos estávamos lá, em volta da classe de Gilmara, e aqui cabe um parêntese: as classes eram inteiriças, de madeira escura, reunindo no mesmo módulo a cadeira e a escrivaninha, unidas por duas hastes de madeira paralelas, que serviam de base. Para facilitar a acomodação dos estudantes, o assento da cadeira era móvel e podia ser levantado. Entre o assento propriamente dito e o encosto das costas havia um vão retangular, de cerca de vinte e cinco centímetros de altura por quarenta de comprimento. Fim do parêntese.

E lá estava Gilmara, ajoelhada atrás da classe, com o pescoço enfiado no vão da cadeira, o queixo apoiado no assento, como se prestes a ser guilhotinada. Levou um certo tempo para tirá-la de lá, enquanto todos nós exercitávamos o que as crianças têm de melhor, que é a crueldade.

O episódio da classe foi para sempre a marca registrada da Gilmara no colégio, e até hoje eu fico imaginando como ela conseguiu, no meio de uma aula cheia e em absoluto silêncio, sair da classe onde estava sentada, se ajoelhar atrás da cadeira, enfiar a cabeça no vão e finalmente dar um jeito de ficar presa lá. Daí que surgiu o conceito do Fator Gilmara, que é a incrível e quase mágica capacidade que as pessoas têm de se meterem, por seus próprios méritos, em situações complicadas das quais elas não conseguem se safar sozinhas.

Escrevo isso porque ando bastante impressionado com o meu Fator Gilmara.

06/09/2006 15:17 | Comentários (10) | TrackBack (0)