rodopio.
tá. um conto.

Rodopio

Que ventava muito na tal manhã e que as rajadas pareciam roubar um pouco do tempo. Que as cartas sobre a mesa de jogo eram gastas nas pontas, dobradas de tristeza. Que tudo tinha voz, e voz arrastada, falando em tempo passando nas rachaduras de parede e pele. Para guardar na memória e esquecer, se necessário. Mas só se desejasse. Assim ele queria que fosse, sempre. Querendo, esquece.
Mas ela não podia mais lembrar, de jeito nenhum. Se o pulmão não funciona, a cabeça não muda, ou pouco. Assim é envelhecer, o corpo vai pedindo para ir embora. Mas na vó era a cabeça que já estava em outro lugar. Perdeu os registros, esqueceu a vida. Quem agüentou não ser lembrado, agradecido, ver transformação a meio metro, corpo cansado fazendo a volta e virando criança?
Mandaram para lá.
Aos domingos tem visita. Os filhos vem lembrar do que ela esqueceu. Nem bem dão as costas, já tem os olhos vermelhos, que é um choro egoísta de não ser nada para mãe. Às vezes na frente mesmo. Quando explode, ela já nem participa. Uma vez passou a mão no rosto consolando, mas na cara ainda aquele sorriso bobo de quem não compreende.
Venta. Entra o neto. Mão no bolso, quer uma lembrança, mas já nem agüenta. Bem sabe a família, que o protege da dor. Mimado, não vem faz tempo. Para suportar, fumou. Os músculos dançam. Pulam memórias, onde a vó faz biquinho falando francês. Na praia gelada, voam os cabelos. A vó anda com graça, sorriso ainda do tipo que sabe, que ri da vida porque pisa onde quer. E ah que seja de outro jeito. Ela se ajeita, e sozinha.
O caminho faz eco. Ele entra na sala, pára. Ela, pequena na postura para poltrona tão grande. O neto dá voltas, vai na janela, olha pra fora. Paira agonia. Vai para poltrona, senta do lado, sorri pra vó, que retribui no não-reconhecimento e simpatia infantil de quem tem a doença e nem se dá conta. O neto não pergunta, porque não ocorre nenhuma que não se baseie em memórias. A vó não pode puxar do fundo, como fazem todas as outras. Ficou raso. Sua vó não é acúmulo, nela tudo zera o tempo inteiro. Por isso os olhos não pesam uma vida. São leves e surpresos de nada ter visto e nada saber. O guri, no entanto e sem explicação, ganhou coragem para encarar. E então a música vem do pátio e ganha a sala pela janela aberta. Edith Piaf bate no ouvido, as mãos ele soca de novo no bolso. Vai olhar para fora e se admira dos velhinhos tirando velhinhas para dançar, na beira do chafariz que talvez funcione pela primeira vez. Ao virar-se para a vó, carrega um perdão que quase não sabe o que é e donde vem. Ela balança a cabeça no ritmo da música, como um bebê admirado, e de repente, no verso, os lábios formam la vie en rose. O guri, embasbacado, trás de longe a memória da letra que a vó ensinou. Escorrega nas pronúncias, nos acentos, nas pausas, mas vai levando com sorriso, com paciência, com esforço. Tímida, clandestina, ela começa junto pela quarta estrofe. Na voz sumida, canta um tempo que ninguém sabe se lembra. Mas canta. E, se o corpo sustentasse, a cabeça ensaiaria um último rodopio.

postado por Carol Bensimon as 14:09 | pitacos (0) | trackBack (0)

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