esconda-me tudo.
Como qualquer adulto jovem transtornado, eu gosto imenso de ver minhas questões existenciais retratadas com a doçura de Charlotte e os neons de Tóquio em Lost in Translation (Encontros e Desencontros). Foi por isso que adiantei-me nos módicos 19,90 do DVD. Já bem familiarizada com o filme (cinco vezes, sendo três na telona), não cogitei a empreitada novamente. Comprei pelos extras. Um grande e justificável equívoco pós-moderno.

Leitor, compreenda. Estamos virados em gente chata que quer saber o "como?". E a tecnologia do DVD veio ao encontro de nossa curiosidade infantil: é possível ver aquele ator transformando-se em monstro verde com uma dose de maquiagem e outra de computação gráfica. Ou descobrir que aquela cena que nos levou às lágrimas foi gerada por mero acaso numa bebedeira da equipe de filmagem. Há também, com certa freqüência, as famosas "cenas excluídas". Ora, mas se foram excluídas, é porque pareciam não ir bem com o conjunto da obra. Portanto, revelar o que o filme não foi me parece tremendamente desnecessário.

Todos esses extras interferem cruelmente na percepção que temos do produto final. Pois então descobri, um pouco tarde talvez, o quanto isso me desagrada. É um convite para perceber que tudo não passou de uma grande mentira. Que, num quarto onde duas pessoas estão convencendo o espectador de sua melancolia e desesperança, há na verdade mais que tristeza no ar: luzes, fios, diretora, assistente, figurinista, o homem da claquete e talvez até um estagiário rindo no banheiro, porque, momentos antes, o Bill Murray fez alguma piada. Sim, leitor, todos nós sabíamos disso. Mas eu não gosto que me lembrem, é só. É como revelar o truque do mágico ou explicar o amor falando de substâncias químicas.

E se a moda desembarca também na literatura? Livros serão vendidos com anexos. Neles, será possível encontrarmos a primeira versão (horrorosa, claro) daquele impecável terceiro capítulo que acabamos de ler, bem como alguns finais cogitados anteriormente pelo autor. É claro que isso parece muito interessante para aqueles que também querem ser criadores e portanto desejam se familiarizar com os processos de outros. Mas, para os demais, me parece haver nisso uma série de desvantagens. Pois imagine que lanço um livro e construo um site para divulgá-lo. No site, através de um arquivo de vídeo, você pode me ver na frente do computador tomando chá de morango e trabalhando no livro, que você, aliás, já leu e gostou muito. Sim, criei com esforço, no trabalho pesado, em páginas de bloco e idéias luminosas na banheira, mas você quer realmente se deparar com toda a frieza da criação?
Encarar o processo pode apagar a vida do personagem, ou ao menos esmaecê-la um pouquinho. Tudo bem se uma maçã caída na cabeça foi decisiva para a descoberta da gravidade, mas na arte me parece que o melhor é esconder tudo que foi responsável pelo nascimento de uma obra. É quase obsceno descobrir, por exemplo, que ficções que ajudaram a mudar o curso de nossa existência foram concebidas por meros detalhes do acaso.

Acontece é que estamos fissurados nessa coisa de documentar processos. Mas processo só interessa porque faz a obra. De forma que, uma vez que a tal está terminada, deixe ela falar, e cale o que a construiu. Assim, vou sossegada assistir mais uma vez o DVD do uruguaio "Whisky" – no qual sabiamente não há extras –, acreditando na ilusão de que surrupiei uns instantes da vida de alguém para mudar um pouco a minha.

postado por Carol Bensimon as 14:47 | pitacos (6) | trackBack (0)

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