verão conceição.
Pra quem não é do RS, taí meu conto que saiu domingo na Zero Hora (caderno Donna). A versão online do jornal exige um cadastro chato.
Pra quem não é do RS, talvez ele não faça mesmo muito sentido.

Verão Conceição

Santiago apareceu no meio do mormaço. Mandei que entrasse e deitei de novo com a cara pro sol. Desde o começo do verão, ele ameaçava uma longa temporada em Imbé, mas ia ficando e dirigindo sua moto barulhenta por todas as ruas da Vila Conceição. Ninguém ouvia, que não fosse eu: nosso tranqüilo morro burguês mandava todo mundo ou pra Santa ou pra Punta, dependendo do bolso e da vontade de ser visto. Em cada canto então o calor se espalhava sem pudores, vibrando mais toda vez que um carro com travesseiros e crianças coladas no vidro entregava os pontos e saía fugido daqui.

É que eu sou cabeça-dura, e por isso fico. Mas o Santiago não, ele é do tipo que deixa se levar, imagino-o perfeitamente encostado na porta de um fliperama de praia, cuidando uma dessas meninas com brinco de casca de árvore, que finge ser grande coisa ao desfilar pelo roteiro obrigatório do verão seu corpinho feito em série nas academias.

Mas Santiago continua aqui, sentado na minha cadeira, com as pernas abertas e os olhos fechados, numa Porto Alegre rejeitada e num bairro com tendências fantasmas para todo o sempre, quanto mais nesses janeiros e fevereiros. E, do silêncio, ele fala assim: tu já viu aquele comercial de final de ano? Eu respondo que não sei de qual ele tá falando, e nem adianta dizer, odeio e nunca vejo televisão, aí ele se inclina pra frente, se empolga e começa a forçar uma voz típica de propaganda. Eu rio da imitação, e Santiago alterna essa entonação cômica com explicações sérias. Parece que a idéia é de que é preciso fazer coisas diferentes para deixar a vida mais longa, porque, quando a gente cai na rotina, o tempo dá a impressão de passar rápido demais. E no fim do relato o Santiago se joga pra trás, transforma a cara, fica todo melancólico e diz que sempre que vê essa historinha, fica arrasado na frente da tevê. Pô, vizinha (ele adora me chamar de vizinha), se a vida fosse editável, será que a minha renderia publicidade?

Então era assim, questões existenciais levantadas por propaganda. Devia é me dar raiva, no mínimo fazer produzir uns discursos silenciosos na intolerância da minha mente, mas eu sorri com cumplicidade, e sincera. Levantei rápido, Santiago se assustou com a iniciativa. Andei animada, vesti uma roupa, peguei o som e a máquina fotográfica que fazia pequenos filmes. Chamei ele da porta, disse Vem, os olhos dele marcavam dúvida explícita. Fomos pra frente do Guaíba sentar no murinho da Praia do Cachimbo, coisa que a gente não fazia desde criança, porque os lugares que as pessoas mais esquecem são os que estão mais perto. Dei play na trilha, o ar se encheu de uma saudade boa. Dei play na filmagem e nem precisei dizer que ele fingisse: foi rindo e lembrando da infância, meio encantado sem entender por que, o vento vinha trazer um cheiro de esgoto que era bom porque era memória e ao mesmo tempo novidade, Santiago talvez não tenha percebido, mas eu percebi, que protagonizávamos a farsa mais verdadeira de todos os tempos.

postado por Carol Bensimon as 14:20 | pitacos (5) | trackBack (0)

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