paixão cartesiana.
Eu me demiti e faz umas quatro semanas que tenho uma vida completamente diferente. Eu trabalhava há quase um ano e meio em uma agência de publicidade, depois de ter dito que nunca mais pisaria em uma. Me apeguei às pessoas, meu chefe era um cara bem humano, alguns trabalhos eram legais, e dedicar uma parte do dia ao Zaffari me dava uma certa tranqüilidade. Todo mundo gosta do Zaffari. Por tudo isso, durante um tempo não senti que de fato estava em uma agência. Talvez eu não tenha percebido que, inconscientemente, eu traçava um plano, e por isso precisava deixar o tempo passar, engolindo no caminho um grau crescente de insatisfação. O plano era o simples resultado do meu senso de responsabilidade e das imposições sociais dialogando com o meu verdadeiro objetivo, a literatura. Começou lá atrás, quando saí do primeiro estágio em redação para fazer a oficina literária do Assis Brasil. Continuou seu curso quando então voltei ao mercado publicitário, depois saí de novo para respirar, e subitamente me apavorei com a iminência de me formar sem estar trabalhando. Adiei a formatura, engoli um Plasil e abracei de novo a publicidade. Tive a ilusão inicial de que podia conciliar minha jornada de no mínimo 8 horas com as coisas que eu queria de fato estar escrevendo em casa, e logo vi que isso não fazia o menor sentido. O pior de tudo é que eu colocava a culpa em mim, me punindo por não ter entusiasmo suficiente para chegar da agência e ficar escrevendo pela noite inteira.
Daí eu tirei 4 semanas de férias e fui para França. Não sei precisar exatamente porque isso foi tão decisivo para atingir o limite da intolerância com o trabalho. Provavelmente porque estava lá sozinha e por isso pensava o tempo inteiro, do ambiente identificava alternativas e o espaço de um escritório começou a ficar apertado demais. Finalmente me libertei das paredes invisíveis que sempre deixaram a minha visão, hm, RETA demais. Quer dizer, deixa eu pensar por um instante... eu estava na publicidade por dinheiro, certo? Imposição social, preocupação com o futuro, artista não sobrevive e todas essas idéias que não fui eu que inventei, só reproduzi. Eu estava ganhando muito dinheiro? Na verdade não. Eu ia conseguir ganhar muito dinheiro com isso dentro de algum tempo? Nunca. Não havia motivação para subir. Não havia amor. Havia inclusive um enorme desprezo. E dinheiro vira uma coisa desimportante à medida que a sua paixão está sendo negligenciada. O desconforto com "o caminho que não escolhi" estava beirando o insuportável. Ao pensar na demissão, vi de repente que eu tinha o controle pleno do que estava acontecendo, e que o plano não podia ser mais cartesiano do que esse que construí nos últimos três ou quatro anos: eu estava assegurando um caminho para ter para onde correr, caso tudo desse errado com a literatura.
Então eu me demiti, e ter além disso percebido que não havia nada de aleatório nas minhas decisões digamos que me deixou mais confortável comigo mesmo. Passei a não me punir mais por julgar meus atos infantis. Percebendo isso tudo de outra maneira, até ganhei o apoio da família.
Eu acordo cedo e passo o dia ocupada. Não há um minuto de tédio e nada é desperdiçado, porém sem a disciplina rigorosa dos locais e horários. Posso ir no parque pensar coisas sobre meu romance. Tenho um outro projeto em andamento também. Há tempo para ler. Muito. Para falar com pessoas. É claro que eu sempre penso que eu podia ser mais motivada do que sou, e geralmente confundo isso inclusive com rapidez ou quantidade de produção. Esse é um conflito que eu aceito não ter fim.
Outras coisas também apareceram com a nova configuração: minha professora de francês propôs que eu desse aula particular, disse que há muita demanda e que ela não dá conta, me encaminharia assim os alunos do básico. Já tenho duas na segunda-feira. Vai ser algo completamente novo, mas meter a mão na língua é o que eu gosto de fazer.
Eu ia falar agora sobre meu amigo que faz quadrinhos, mas vi que o post já está longuíssimo. Bem, basta dizer que essa idéia de fazer quadrinhos sempre foi um tanto quanto ridicularizada pelo entorno, e portanto cedendo a essas pressões até em banco ele trabalhou, quando subitamente foi iluminado por um assalto que, nas suas idéias paranóicas, o confrontou com a idéia da morte. Foi portanto insistir nos quadrinhos, e agora vende roteiros pros Estados Unidos e para o Egito. Ele ama, e portanto faz bem. Uma fórmula tão simples que o medo não me deixava ver.

postado por Carol Bensimon as 14:44 | pitacos (17) | trackBack (0)

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