tratado para morrer a tia.
Recebi um mail muito bonito hoje sobre o conto que publiquei na Bravo em abril. O mail tinha um monte de surpresas fofas e oportunidade de se pensar o clichê ah mas que vida engraçada. Ainda não respondi, mas estou colocando o conto aqui, coisa que já deveria ter feito antes.

tratado para morrer a tia

E como eu soubesse que o amigo Almirante vinha lá da Guanabara duas vezes por ano, e essa era uma, aproveitei a ocasião. Liguei um dia, retornou em seguida. Estava animado o Almirante, dizendo que se desse vontade já emendava Porto Alegre com Colonia del Sacramento com Buenos Aires, num carro e depois num ferry, que era o jeito bonito de fazer a fuga, e eu disse Que fuga, Almirante?, e respondeu-me que o Rio de Janeiro continuava lindo, mas ele já não tinha mais paciência para tanta sunga e tanta bunda, o carioca é um escancaro, dizia o Almirante, tudo te dão, tudo te tiram, e seguia uma longa interjeição aberta que terminava no ritmo apaixonado de um tango, Caríssimo Mauro, quero uma porteña que me esconda os sentimentos e que eu perca pelas calles, e eu ria do outro lado, era louco esse grande cara.
Encontrei-o num bar sujo de frente para o Guaíba, onde os insetos deitavam e morriam no feltro verde das sinucas de ficha. Abraçou-me o Almirante tão forte dizendo Esse é o jeito carioca de mostrar que gosto de ti, e eu o empurrei, Esse é o jeito gaúcho, e rimos já erguendo as mãos para pedir um traguinho. Então mal engatou um papo normal perguntando de Beth e de Giovani e de Guto, interrompeu-se com gargalhadas e batidas na mesa, e olhando pro sol se pôr com os olhos apertados e as feições que se escondiam no meio da luz, disse não entender absolutamente a fama da coisa, por que essa conversa de um dos mais bonitos do mundo se em todo o lugar era o mesmo sol e a água por certo muito mais bela? Nós nesse sul aqui perdido, disse, nunca pertencemos a lugar algum, e pensei então cá comigo, lá vem o Almirante que sempre solta as idéias sem triagem quando o sol vai alaranjando, num estímulo-resposta tal qual rato de laboratório.
E tão alegre estava o Almirante que contou-me com naturalidade e talvez propositadamente alto quando passava uma pequena na grama equilibrando-se no salto e o namorado atrás agarrando seu braço e pedindo Me escuta, e ela continuava desbravando as irregularidades da terra e então o Almirante empostou a voz para que apontassem os holofotes e disse Sabe aquela tia minha de Pelotas?, e eu disse Qual tia? e ele disse A gorda e eu sinalizei com a cabeça que sabia, e disse o Almirante: poisé, morreu, nunca mais nem um diazinho da minha vida nem uma hora vai ser gasta com o crachá pendurado no pescoço, a tia me deixou todo o dinheiro.
Brindamos a isso e eu pensei que dessa vez o Almirante não ia mais parar e lá viria Patagônia e República Tcheca e do Oriente voltaria budista, ou melhor, hinduísta, ou melhor, por certo algo que não sabíamos ainda o nome e que não era divulgado em cartazes dentro de restaurantes vegetarianos. E foi quando já havíamos fechado a conta e levantado e caminhado alguns metros na noite estrelada quase rural que fazia nessa parte da cidade onde crescemos juntos que me constrangi todo mas resolvi dizer mesmo assim, disse Ô Almirante, sabe que estou precisando de um terno, realmente não tenho dinheiro até o próximo mês e estou precisando é pra agora, será que?, e ele logo entendeu, porque éramos amigos de longo tempo e disse que sim, claro, e brincou Vai casar?, e eu falei Não, tenho um enterro, e perguntou De quem?, e eu disse Da minha tia. Qual tia?, e então parou para olhar um barquinho lá longe e eu parei também para dividir aquele barquinho com o Almirante, e assim olhando e com a voz muito baixa, eu disse: a manca.

postado por Carol Bensimon as 19:05 | pitacos (5) | trackBack (0)

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