gabriel.
Desde que o Gabriel morreu, ficou impossível não pensar nele a cada instantezinho do dia, como se não havendo mais o corpo fosse necessário que ele tomasse as nossas cabeças como lugar. Num primeiro momento a cidade se tornou perigosa e ameaçadora, além de cheia de Gabriéis em todas as ruas que andávamos falando besteira e muito de planos. Quando estamos nesse luto, o sol estar lá fora chega a ser ofensivo. No começo eu não conseguia escrever sobre, porque quando há muito o que dizer, não há nada. O Gabriel foi o cara que na noite do seu aniversário me chamou para ir ao Atelier das Massas com os seus pais. Eu espero que isso queira dizer muito sobre a enorme amizade que tivemos, bem como as inúmeras briguinhas que nossos orgulhos faziam durar mais do que deveriam. Mas eu tenho certeza que só quem pode nos tirar do sério é alguém de quem gostamos além da conta.
Como para qualquer um da nossa idade, morrer sempre esteve fora de cogitação. O que me consola é saber que o Gabriel nunca deixou para fazer no dia seguinte o que podia ser feito já, o que provavelmente nunca poderei dizer a meu respeito.
Quando eu voltei da França, vim com a idéia de um projeto, eu ia escrever e ele tiraria as fotos. Estávamos entusiasmados. Queríamos falar sobre o singular, o insólito desse sul do Brasil. Fomos para Pinhal e Cidreira num dia feio que ressaltava o feio que sempre está lá. Não foi um dia excepcionalmente divertido e cheio de risadas, mas havia uma alegria tranqüila, um estar tirando o melhor de um lugar onde não há muita coisa porque tínhamos a companhia imprescindível e às vezes silenciosa um do outro. O Gabriel sempre fez com que eu me sentisse muito à vontade, e por isso eu fiquei saracoteando lá naquela praia sem graça e imitando o caminhar e os ruídos hilários de umas aves catadoras de tatuíras. No fim da viagem, encontramos umas dunas perto de Cidreira. O céu estava incrível, a areia era branquíssima e não havia nada em volta, até o mar tinha ficado longe. Eu me lembro da clara sensação de estar na superfície de um outro mundo.
Tenho pensado muito nesse dia porque, embora exista uma quantidade incrível de imagens do Gabriel no hd de todos os nossos computadores, as fotos que eu tirei dele nessa viagem por alguma razão foram as que as pessoas devem ter julgado como as mais expressivas ou sei lá, talvez as mais Gabriel, sem o sorriso do entusiasmo de uma festa ou no meio de uma coreografia exagerada, embora isso também fosse ele, mas simplesmente estar ali assobiando numa praia nublada. Elas foram para o jornal, para a capa do Insanus e estavam também no site pessoal que o Gabriel estava construindo. E logo vão estar na sua lápide. Eu jamais poderia imaginar que estava tirando a foto da tua lápide, Gabriel. Fico vivendo essa cena de novo e de novo e não há nada nela que me indique onde é que tudo ia parar.
Penso então no que fazer para diminuir o avalanche de memórias. Quando saio, tento evitar a descida da Mostardeiro. Mas evitar já é de novo estar pensando.

postado por Carol Bensimon as 17:24 | pitacos (1284) | trackBack (0)

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